{"id":11045,"date":"2022-02-18T15:00:59","date_gmt":"2022-02-18T18:00:59","guid":{"rendered":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/?p=11045"},"modified":"2022-02-18T18:55:39","modified_gmt":"2022-02-18T21:55:39","slug":"cronica-quilombo-aereo-quantos-pretos-precisam-pra-mudar-a-cor-do-ceu","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/cronica-quilombo-aereo-quantos-pretos-precisam-pra-mudar-a-cor-do-ceu\/","title":{"rendered":"Cr\u00f4nica – Quilombo a\u00e9reo: “quantos pretos precisam pra mudar a cor do c\u00e9u?”"},"content":{"rendered":"

\"\"<\/p>\n

Por K\u00eania Aquino Garcia.<\/span><\/p>\n

***<\/p>\n

Eu K\u00eania Aquino Garcia, n\u00e3o consigo lembrar exatamente em que momento come\u00e7ou minha paix\u00e3o pelo c\u00e9u. Mas lembro de morar a inf\u00e2ncia inteira em um lugar alto que me permitia ver o p\u00f4r do sol no reflexo do morro das antenas, no bairro Partenon em Porto Alegre. Essa foi sem d\u00favidas uma das lembran\u00e7as mais marcantes do in\u00edcio desse amor.<\/p>\n

Nessa \u00e9poca da vida era comum eu me flagrar olhando pro c\u00e9u e imaginando que haviam formas, cores e coisas totalmente diferentes l\u00e1 em cima. E n\u00e3o somente isso, eu gostava de imaginar que logo atr\u00e1s do morro das antenas j\u00e1 era a cidade de S\u00e3o Paulo.<\/p>\n

\"\"<\/p>\n

Fonte foto – https:\/\/quilomboaereo.com.br\/2021\/02\/02\/loren-ipsum-2\/<\/span>.<\/p>\n

Fui crescendo e entendendo que meu maior pesadelo era acordar aos 50 anos e perceber que passei a vida toda trabalhando no mercado do bairro e n\u00e3o conheci nada al\u00e9m da minha cidade. Pr\u00f3ximo dos meus 16 anos minha m\u00e3e teve a oportunidade de nos levar pra viajar de avi\u00e3o pela primeira vez e a\u00ed lembro perfeitamente da sensa\u00e7\u00e3o de frio na barriga e do turbilh\u00e3o de informa\u00e7\u00f5es e sentimentos que seguiram depois daquele dia. Descobri que havia uma vis\u00e3o ainda mais bonita das nuvens, e que olhar elas de cima pra baixo tinha uma esp\u00e9cie de magia.<\/p>\n

Naquele dia, com toda maturidade errante dos meus 16 anos ficou decidido que eu ia trabalhar acima das nuvens e vivenciar todos os dias aquela magia. N\u00e3o tive nenhuma d\u00favida de que isso ia acontecer, a d\u00favida era: Como fazer isso?<\/p>\n

Para uma menina negra da periferia, nunca havia sido uma possibilidade ser comiss\u00e1ria de voo, eu nem sabia direito o que era voo. Sabia que existiam avi\u00f5es, logicamente, mas n\u00e3o era algo que eu e minha fam\u00edlia t\u00ednhamos em mente quando pens\u00e1vamos em possibilidades de profissionaliza\u00e7\u00e3o. N\u00e3o havia nenhum familiar piloto, n\u00e3o morava nenhuma aeromo\u00e7a na nossa rua.<\/p>\n

\"\"<\/p>\n

Fonte foto – https:\/\/viracoposaeroparking.com.br\/tem-medo-de-viajar-de-aviao-entenda-porque-voar-e-seguro\/.<\/span><\/p>\n

Naquele mesmo ano eu comecei a trabalhar, e a sonhar com tudo o que tinha planejado pra minha vida profissional. Levei alguns anos pra conseguir enfim pagar o curso, e quando comecei o curso muitos n\u00e3o acreditavam em mim, alguns dos meus familiares duvidavam que eu conseguiria de fato voar.<\/p>\n

S\u00f3 que, quando se tem prop\u00f3sito e f\u00e9 as montanhas se movem mesmo. Comigo, aos poucos e com muitas m\u00e3os ajudando, as montanhas foram se movendo. Nessa \u00e9poca eu fazia o que dava pra fazer, criei rifa, fiz viagem de 18 horas de \u00f4nibus, dormi no sof\u00e1 dos colegas, dos amigos de familiares, um bolo pra vender ali ou aqui, enfim tudo era v\u00e1lido.<\/p>\n

Precisei de quatro tentativas de processos seletivos sendo a maioria fora de minha cidade natal at\u00e9 enfim conseguir minha sonhada vaga para trabalhar como comiss\u00e1ria de voo. E em 2008 decolei de vez e fui viver aquela que seria a melhor fase da minha vida. Seria o para\u00edso \u201cviver\u201d as nuvens de cima para baixo diariamente, se n\u00e3o fosse o racismo.<\/p>\n

\"\"<\/p>\n

\u201cPrimeira turma de comiss\u00e1rios de voo exclusivamente para negros do Brasil”<\/strong><\/p>\n

Precisei Olhar nos olhos do racismo todos os dias a bordo, entendendo que a estrutura racista queria que todas as mulheres e homens pretos passassem os mesmos maus bocados que eu passei para chegar ali. E essa foi s\u00f3 uma das descobertas que foi fazendo eu perder o brilho, perder a vontade e perder a alegria de voar.<\/p>\n

Depois de muitos anos apanhando do racismo eu decidi que n\u00e3o mais seria \u201cAeropreta\u201d. Estava cansada de conviver com as dores da discrimina\u00e7\u00e3o velada, os horrores do racismo descarado e acabei por me afastar do trabalho alguns meses por aconselhamento do meu terapeuta. Quando voltei estava pronta para pedir as contas. Mas a vida ela \u00e9 uma montanha russa e quando chegou a hora de eu desistir de tudo e pousar de vez, encontrei outras comiss\u00e1rias negras que vivenciaram a mesma coisa que eu: Racismo a bordo todos os santos dias.<\/p>\n

\"\"<\/p>\n

Nossa primeira Pilota Preta, Laiara Amorim e K\u00eania Aquino Garcia.<\/span><\/p>\n

Era uma doen\u00e7a silenciosa e n\u00f3s n\u00e3o \u00e9ramos as pessoas doentes, por\u00e9m acab\u00e1vamos adoecidos por viver aquilo.<\/p>\n

Quando nos encontramos n\u00e3o sab\u00edamos ao certo o que seria de nosso encontro, por\u00e9m n\u00e3o demorou muito pra entendermos o motivo de termos nossos caminhos cruzados. O Quilombo a\u00e9reo chegou de repente e veio para trazer luz a um problema que a avia\u00e7\u00e3o fingia que n\u00e3o existia. \u00c9ramos enfim o primeiro coletivo de comiss\u00e1rias, comiss\u00e1rios e pilotos negros da avia\u00e7\u00e3o civil brasileira e n\u00e3o est\u00e1vamos mais nos sentindo sozinhos nesse ambiente.<\/p>\n

Desde 2018 estamos trabalhando arduamente para fazer a diferen\u00e7a em nossa \u00e1rea e vamos seguir com nossos projetos e nosso prop\u00f3sito: trazer equidade racial para o c\u00e9u do Brasil.<\/p>\n

\"\"<\/p>\n

\u201cPrimeira turma de comiss\u00e1rios de voo exclusivamente para negros do Brasil”<\/strong><\/p>\n

O primeiro edital que o coletivo Quilombo A\u00e9reo foi aprovado foi atrav\u00e9s do Fundo Baob\u00e1, um edital de lideran\u00e7as femininas que apoiou principalmente a Laiara Amorim nossa primeira Pilota Preta do Quilombo a\u00e9reo que \u00e9 tamb\u00e9m uma das pessoas respons\u00e1veis por me fazer seguir voando naquele fat\u00eddico ano em que eu achei que teria perdido a batalha pro Racismo.<\/p>\n

De l\u00e1 pra c\u00e1 muitas coisas boas aconteceram, inclusive nossa aprova\u00e7\u00e3o no segundo edital do Quilombo A\u00e9reo! Dessa vez vinculado a plataforma da Benfeitoria, que nos permitiu criar o projeto PRETOS QUE VOAM. Esse projeto \u00e9 atualmente o menino dos meus olhos e ele basicamente consiste em um programa de bolsas de estudos para pretos perif\u00e9ricos de baixa renda. Ele foi nesse \u00faltimo ano nosso maior foco de trabalho e nos permitiu vivenciar coisas inimagin\u00e1veis quando come\u00e7amos.<\/p>\n

\"\"<\/p>\n

Jessica Carneiro, foi uma das alunas selecionada no primeiro edital.<\/strong><\/p>\n

Formamos dia 20 de novembro de 2021 a primeira turma de comiss\u00e1rios de voo totalmente negra da avia\u00e7\u00e3o civil brasileira, e a festa foi realizada na sede de uma sociedade\u00a0\u00a0chamada Floresta Aurora,\u00a0\u00a0que foi fundada ainda antes do fim da escraviza\u00e7\u00e3o, por pessoas escravizadas. Naquela sociedade onde nossos alunos celebraram a conclus\u00e3o do curso, os pretos costumavam se reunir para comprarem as alforrias uns dos outros.<\/p>\n

N\u00e3o tem coisa mais simb\u00f3lica do que dar asas e liberdade aos nossos do mesmo jeito que nossos ancestrais faziam. Nossos alunos desse projeto s\u00e3o pessoas diversas, temos m\u00e3es solo, pessoas LGBTQIA+, temos a primeira comiss\u00e1ria de voo quilombola, \u00e9 a hist\u00f3ria sendo feita e a dor que nos foi apresentada atrav\u00e9s do racismo sendo transformada em amor, cuidado e carinho.<\/p>\n

\"\"<\/p>\n

\u201cPrimeira turma de comiss\u00e1rios de voo exclusivamente para negros do Brasil”<\/strong><\/p>\n

Depois de nossa primeira formatura continuamos trabalhando, e estivemos com nossa segunda vaquinha para dar prosseguimento ao trabalho do Quilombo A\u00e9reo. Arrecadamos o valor necess\u00e1rio para agora em 2022 abrirmos nossa pr\u00f3pria institui\u00e7\u00e3o de ensino, e \u00e9 assim senhoras e senhores que vamos finalmente mudar a cor do c\u00e9u.<\/p>\n

Se eu pudesse hoje encontrar aquela menina l\u00e1 do Partenon que tinha medo de acordar aos 50 anos com uma rotina enfadonha e sem ter descoberto o que tinha atr\u00e1s do morro das antenas eu diria poucas coisas, dentre elas eu diria que ela poderia ficar tranquila porque ela j\u00e1 nasceu com as asas abertas. \u00c9 s\u00f3 uma quest\u00e3o de tempo pra decolagem acontecer.<\/p>\n

E o Quilombo a\u00e9reo chegou pra mostrar a todas as meninas e meninos que est\u00e3o na periferia que tem muito mais coisas acima das nuvens do que eles podem sonhar e que o c\u00e9u N\u00c3O \u00c9 um limite.<\/p>\n

\"\"<\/p>\n

***<\/p>\n

Por K\u00eania Aquino Garcia.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Por K\u00eania Aquino Garcia. *** Eu K\u00eania Aquino Garcia, n\u00e3o consigo lembrar exatamente em que momento come\u00e7ou minha paix\u00e3o pelo c\u00e9u. Mas lembro de morar a inf\u00e2ncia inteira em um lugar alto que me permitia ver o p\u00f4r do sol no reflexo do morro das antenas, no bairro Partenon em Porto Alegre. Essa foi sem […]<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":11106,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"tdm_status":"","tdm_grid_status":"","footnotes":""},"categories":[21,25],"tags":[],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/11045"}],"collection":[{"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=11045"}],"version-history":[{"count":13,"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/11045\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":11129,"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/11045\/revisions\/11129"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media\/11106"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=11045"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=11045"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/vidabrasiltexas.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=11045"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}