Por Dr. Osvaldo Tetaze Maia.
Ilha de Guernsey no Canal da Mancha hoje
Nós aqui do sul do mundo sofremos com nossas mazelas sociais ao longo dos séculos, mas no hemisfério norte, os maiores sofrimentos vêm das guerras e atrocidades que são mais constantes por aquelas bandas, e sobre esses períodos e seus episódios, por aqui aprendemos vagamente nas escolas, salvo se você for um amante da história.
Imagine viver em uma paradisíaca ilha com índice de criminalidade zero e subitamente vê-la invadida por um exército estrangeiro, após uma noite de bombardeios! Esse episódio está espetacularmente narrado na forma de uma linda história de amor no filme lançado esse ano, e já disponível na Netflix – “A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata” – (The Guernsey Literary & Potato Peel Pie Society)
Ilha de Jersey no Canal da Mancha hoje
Em 1939 a segunda guerra mundial eclodiu na Europa, e em Junho de 1940 a Alemanha invadiu a França. Os episódios a seguir narrados nunca foram amplamente divulgados fora do território das Ilhas invadidas do Canal da Mancha, os únicos territórios britânicos que o exército alemão conseguiu dominar.
As Ilhas de Jersey e Guernsey no Canal da Mancha (Alderney, Sark e Herm, estas também pertencem á Coroa britânica, mas nada conhecidas por aqui), só se tornaram conhecidas aqui no Brasil quando um conhecidíssimo político daqui resolveu guardar em seus bancos na década de 90, a fortuna que havia roubado junto com sua família dos cofres do estado de São Paulo, pois até então pouquíssimos sabiam da existência delas aqui por estes lados do sul do mundo.
Mapa ilustrativo do Canal da Mancha
Mapa ilustrativo do Canal da Mancha
Entretanto, na década de 40, Hitler sabia da importância estratégica dessas Ilhas no Canal da Mancha, localizadas a cerca de 30 km da costa da França, pelo menos como propaganda nazista de que havia tomado território britânico, e que ainda facilitaria a sua invasão no continente pela costa francesa, porém, Churchill desmilitarizou as Ilhas deixando-as indefesas e somente com a população civil.
Quando a Alemanha começou a bombardear a França em Junho de 1940, o Governo britânico começou a evacuar os moradores das Ilhas, e cerca de 30.000 pessoas foram conduzidas para a grande Ilha, quase um terço da população de ilhéus, a maioria transferida para Londres, e a população restante ficou na sua maioria nas Ilhas de Jersey e Guernsey.
As Ilhas do Canal da Mancha, um dos principais destinos turísticos dos britânicos passou a ser comandada pelos nazistas, e o verão de 1939 foi o último período de paz no território, com a retomada das viagens turística reiniciando somente no final da década de 40. As Ilhas já haviam curado suas feridas, porém ficaram com cicatrizes eternas jamais imaginadas por seus habitantes.
Exército alemão desfilando em Guernsey em 1940
Em 28 de Junho de 1940 a artilharia aérea alemã bombardeou Jersey e Guernsey matando 44 pessoas, sem saber que nas Ilhas não estava mais o exército inglês, pois Churchill mandou evacuar o máximo de moradores possível sem qualquer informação nos jornais. Dois dias depois os alemães invadiram as Ilhas e tomaram o controle do campo de pouso de Guernsey, quando foram informados pelo Chefe de polícia local que não havia mais exército nas Ilhas.
Último dia de evacuação de moradores das Ilhas
Imediatamente a bandeira com a suástica nazista foi levantada em toda a Ilha que permaneceu sob o comando nazista até o final da guerra em Maio de 1945, tornando-se um dos territórios que mais tempo ficaram sob o domínio alemão na segunda guerra.
Ordens do Comandante Alemão para a população de Guernsey após a invasão.
Daquele dia em diante até o fim da guerra, o que era um paraíso bucólico transformou-se em uma Ilha sitiada por milhares de soldados alemães, e dos poucos homens locais que sobraram na Ilha, muitos foram enviados para os campos de concentração no Continente.
O toque de recolher noturno foi imposto aos moradores das Ilhas das 11 horas da noite até as 05 horas da manhã, e as condições de vida e alimentação foram se degradando dia a dia. O pequeno efetivo policial inglês que permaneceu na Ilha, ficou completamente subjugado ao comando nazista, e para vergonha total dos ingleses, foram obrigados a trabalhar de ’chauffeurs’ (motoristas) para o Comando alemão.
Cena do documentário (Imagem real da época) “The bitter years” – Youtube
Cena do documentário (Imagem real da época) “The bitter years” – Youtube
A Ilha de Guernsey não tinha atividade bélica alguma, não houve mais combates e os ingleses nunca tentaram retomá-la durante todo o período da guerra, talvez uma estratégia militar de Churchill, mas isso não tornou a vida dos nativos mais cômoda, muito pelo contrário, pois após o bombardeio onde morreram mais de 40 pessoas numa só noite, número maior do que os homicídios em toda a história da Ilha, a vida nunca mais foi a mesma, pelo menos durante os cinco anos de ocupação nazista.
Os seus habitantes encontraram-se da noite para o dia sendo comandados por um exército invasor, e o pior, há menos de 100 km estava o seu poderoso governo britânico que optou por retirar seu exército das Ilhas do Canal, fazendo com que elas ficassem completamente isoladas por cinco anos, sem contato algum com o resto do mundo.
Os soldados alemães em suas folgas costumavam tomar banho de sol nas praias com calções e sem camisa, o que não era costume dos ingleses naquela época, e não passavam desapercebidos aos olhos dos mais velhos que reprovavam esse costume, nem tampouco das moças das Ilhas, que sempre ficavam as escondidas vendo-os tomar banho de mar.
Soldado alemão na Ilha de Guernsey
Dolly Edwards, na época da invasão dos alemães à Ilha tinha 15 anos, e era uma das moças que ficavam admirando os soldados nas praias. Era também a mulher mais jovem da Ilha, pois perdeu o último barco que evacuou todos os menores de 15 anos antes da invasão, e passou a morar com sua Tia.
Uma das últimas edições do jornal inglês nas Ilhas, antes da ocupação alemã
A vida na Ilha vinha se tornando cada dia mais difícil, e no auge da guerra em 1943 a luta por alimentos era diária, e certo dia Dolly, já então com 18 anos, foi flagrada roubando um pão da padaria onde trabalhava, para levar para sua casa. Ela foi entregue e presa pelos alemães que a enviaram para uma prisão em Lille, no norte da França, onde ficou encarcerada por quatro meses até ser enviada de volta junto com outros prisioneiros para trabalho forçado em Guernsey, pois os alemães queriam construir fortificações em volta da Ilha.
Tropas alemãs entrando na Ilha de Guernsey
No barco que conduzia os prisioneiros de volta para a Ilha, estava um soldado alemão de nome Willi Joanknecht que retornava de licença e que Dolly já conhecia, e ele também a conhecia, pois várias vezes havia notado que ela o espionava na praia, e quando a encarava Dolly mostrava a língua para o Alemão.
Ao reparar que no porão do barco lá estava Dolly, Willi a chamou para o deck superior e ofereceu-lhe café e comida, iniciando assim uma relação de amizade que se continuou na Ilha, onde o Alemão sempre levava uma ração de alimentos para Dolly.
De volta à Ilha, Willi conseguiu que Dolly voltasse a viver com sua Tia e não fosse trabalhar na construção das fortificações na costa, e arrumou ainda um novo emprego para ela, e assim os dois encontravam-se quase que diariamente.
A construção dessas fortalezas na costa da Ilha levou milhares de escravos de toda a Europa para efetuar os trabalhos, e com isso, as mesmas barbaridades dos campos de concentração do Continente também aconteciam na Ilha. Os prisioneiros trabalharam dia e noite, famintos e doentes, e quando não podiam mais trabalhar eram simplesmente eliminados.
Soldado alemão tomando conta do QG da Força Aérea Britânica
Fortalezas construídas na Ilha de Guernsey
A alimentação dos ingleses naquela época nas Ilhas era invariavelmente uma “Torta de Casca de Batata” (Potato Peel Pie), hoje em dia um prato típico dos britânicos, mas naquele período comê-la todos os dias da semana não era uma boa opção, e assim, o Alemão sempre que podia levava algum outro alimento para Dolly e sua Tia, ao mesmo tempo em que ela lhe ensinava o inglês e ele lhe ensinava o alemão.
Era claro que sua Tia não aprovava essa amizade, que pronto mostrou-se ser uma relação amorosa, muito menos a população da Ilha que vivia sob o jugo dos alemães, e Dolly recusou cortar a relação mesmo com toda a insistência da família.
Em 06 de Junho de 1944, a poucos quilômetros das Ilhas, iniciou a invasão da Normandia, o famoso “Dia D”, e com a chegada dos aliados no Continente o exército alemão começou a bater em retirada deixando tudo para trás, inclusive seu exército nas Ilhas do canal da Mancha, que ficaram sem os suprimentos que chegavam regularmente.
Assim, por volta do Natal de 1944 as provisões da Ilha estavam a zero, e sem suprimentos e sem condições de fugir devido ao bloqueio do Canal da Mancha pelos aliados, o Exército alemão começou a comer tudo que era tipo de animal das Ilhas, incluindo cachorros, gatos, cavalos e o que mais pudesse servir de alimento.
Os residentes continuavam com sua “Potato Peel Pie” e qualquer outro tipo de vegetais que podiam ainda ser colhidos, sobrevivendo em uma dieta desesperada que incluía ainda um manjar branco feito de musgo vermelho das praias e folhas de amora, e pastinaca torrada, um tipo de cenoura mais clara quando ficaram sem chá e café.
Tradicional Torta de Casca de Batata (Potato Peel Pie)
Em 09 de Maio de 1945 finalmente as Ilhas foram liberadas com a invasão das tropas inglesas que não encontraram nenhuma resistência por parte dos Alemães. A Cruz vermelha se encarregou de trazer os mantimentos iniciais para a população, bem como remédios e os soldados foram considerados prisioneiros de guerra e levados para a Inglaterra.
Invasão e Liberação das Ilhas Britânicas do Canal da Mancha
Um pouco antes da liberação, Dolly Edwards deu a luz ao seu primeiro filho, o qual recebeu o nome de Tony em homenagem a um presidiário que esteve com ela na mesma prisão em Lille na França, pois esse homem chamava-se Antônio e havia salvado sua vida naquela prisão.
No dia em que os soldados alemães estavam sendo conduzidos para as prisões na Inglaterra, Dolly conseguiu ir até o cais do porto para mostrar o filho ao Papai Willi, pois não sabia se voltaria a encontrá-lo algum dia.
Ao final daquele ano Dolly conseguiu ir para Londres com seu filho pois pretendia iniciar uma nova vida e ao mesmo tempo tentar encontrar a prisão que haviam levado o Pai de seu filho, ademais, a vida na Ilha já havia se tornado insuportável, pois a população não aceitava a sua relação com um soldado inimigo.
Pouco tempo depois de chegar a Londres, Dolly conseguiu um trabalho e ficou sabendo que naquele bairro havia alguns soldados alemães que foram levados para lá e ajudavam a reconstruir a cidade, e foi assim que encontrou o seu Willi.
Os dois receberam a licença para casar em Dezembro de 1946, mesmo ainda sendo Willi um prisioneiro de Guerra, tornando-se o primeiro casal anglo-alemão a obter tal concessão do governo britânico, e dizem que foi o único caso!
Foto da época do casamento em Londres na reportagem da TV em 2005
Foto da época do casamento em Londres na reportagem da TV em 2005
Foto da época do casamento em Londres na reportagem da TV em 2005
Após cumprir sua pena de prisão, eles tentaram voltar para a Ilha de Guernsey, mas descobriram que o Prefeito na época havia proibido que eles voltassem algum dia, e então eles fixaram sua residência em Londres.
Lá o casal teve mais quatro filhos e ficaram casados por 68 anos, quando Willi morreu em 2015. Dolly morreu em 2017 pouco antes de completar 90 anos!
Willi e Dolly em entrevista à TV Inglesa em 2005 (Youtube) Forbidden Love: https://www.youtube.com/watch?v=14Ohotq7-eo
No centro uma das mais recentes fotos do casal
Selo comemorativa dos 70 anos da liberação das Ilhas
Foi lançado este ano o primeiro filme até hoje sobre a realidade dos moradores dessas Ilhas, chamado intrigantemente de “A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata” (The Guernsey Literary & Potato Peel Pie Society), que aconselho a busca de mais algumas leituras sobre o período da invasão alemã às Ilhas do Canal da Mancha antes de assistirem esse excelente filme (em inglês há muita informação hoje), e prepare-se para chorar em uma das mais emotivas, comoventes e dramáticas histórias da segunda guerra mundial, que deixou milhares de pessoas totalmente isoladas de qualquer contato com o mundo além das Ilhas, vivendo por cinco anos numa verdadeira prisão física e emocional, a céu aberto.
Cartaz do Filme
Cartaz do Filme
Diferentemente de qualquer outro país invadido e dominado pelos alemães na segunda guerra, as Ilhas Britânicas do Canal da Mancha sofreram um tipo diferente e muito mais marcante de repressão, pois além das próprias tragédias e atrocidades da guerra e por serem um território pequeno e sem fronteiras terrestres, não havia a mínima chance de fugirem, portanto, foram cortados todos os contatos com o mundo exterior, pois os alemães controlavam desde os Correios e os Portos das Ilhas, além de qualquer outro tipo de comunicação.
A rádio e os jornais foram substituídos pelos alemães, e nas escolas o idioma alemão passou a ser obrigatório para as poucas crianças que restaram nas Ilhas, portanto, ficaram subjugados totalmente ao regime nazista, afetando terrivelmente o seu pacato estilo de vida.
É certo que não há como comparar qual o povo que mais sofreu sob o domínio nazista, qual o país mais prejudicado, qual o campo de concentração mais cruel, enfim, não há como diferenciar os crimes contra a humanidade cometidos, portanto, como ávido leitor dos acontecimentos da nossa história moderna, tiro minhas conclusões, deixando para o leitor a sua própria análise dos fatos.
Cena do Filme (Trailer Youtube ou Netflix)
Ilha de Jersey no Canal da Mancha hoje
Ilha de Jersey no Canal da Mancha hoje
Ilha de Jersey no Canal da Mancha atualmente
Fonte: Youtube – Channel Island during WWII https://www.youtube.com/watch?v=-DcGllUPg40&t=49s –
Fonte: The Bitter Years – Youtube https://www.youtube.com/watch?v=rN-XA8Ms1Ns
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Por Dr. Osvaldo Tetaze Maia
Muito bom o artigo! Assisti ao filme semana e adorei saber mais!!
Gostei, estou lendo o livro. O filme é maravilhoso, mas o livro retrata com mais detalhes o sofrimento nada romantico daquele povo. Vale a pena conferir, e como estou na reta final gosto de pesquisar matérias sobre a ilha na época da guerra. Parabéns, uma postagem 10!
Parabéns, ótimo artigo, obrigado por compartilhar essa linda história de amor. Cheguei aqui porque assisti ao filme, e fui pesquisar mais sobre as ilhas ilhas, os acontecimentos na época da WWII, e sobre a história do livro e filme.
Assisti o filme hoje, ele é simplesmente maravilhoso, nunca me interessei tanto pela II Guerra como agora, o filme me fez vim nesse artigo que também é maravilhoso, parabéns por ele, fiquei interessada pelas histórias da ilhas e me encantei, história muito linda da Dolly e o Willi.
Muito obrigado Ana, realmente a história é fantástica! Irei conhecer as Ilhas na minha próxima viagem a Inglaterra nesse ano ainda, assim que terminar essa período de COVID, e mandarei mais histórias sobre este episódio aqui na Revista;
Obrigado aos demais que comentaram, e desculpas por não ter manifestado antes;
Abraços;
Adorei o artigo. Comecei a assistir ao filme hoje e parei para ler e me informar. Impressionante como nunca tinha ouvido falar sobre o caso dessas ilhas na segunda guerra. Obrigada por escrever tão didaticamente. 🙂
Obrigado Paula, um forte abraço!
Gostaria de saber mais sobre o tal político de SP, citado logo no inicio da magnífica matéria: – “As Ilhas de Jersey e Guernsey no Canal da Mancha (Alderney, Sark e Herm, estas também pertencem á Coroa britânica, mas nada conhecidas por aqui), só se tornaram conhecidas aqui no Brasil quando um conhecidíssimo político daqui resolveu guardar em seus bancos na década de 90, a fortuna que havia roubado junto com sua família dos cofres do estado de São Paulo, pois até então pouquíssimos sabiam da existência delas aqui por estes lados do sul do mundo.”
Boa tarde Carmem, obrigado pelo elogio à matéria, fantástica mesmo essa história; Quanto ao ‘político’, foi o PAULO MALUF e sua família, os quais desviaram muito dinheiro do governo de SP e durante muito tempo negaram que o dinheiro encontrado lá nas ilhas não era deles, mas enfim a justiça conseguiu recuperar alguma parte – no Google há muitos links com essa história – https://www.conjur.com.br/2020-fev-06/advogados-ficam-20-milhoes-dinheiro-repatriado – https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/04/justica-de-jersey-determina-que-paulo-maluf-devolva-dinheiro.html – https://oglobo.globo.com/politica/defesa-de-maluf-admite-que-ele-tem-dinheiro-em-jersey-5544632 – Forte abraço.
Meu filho caçula que morava em LISBOA mudou-se para essa ilha Guernsey para trabalhar na rede de restaurantes Chrities.Assim tiver mais notícias mandarei