Por: Dr. Sady Ribeiro.
O espelho quebrado e a catarata, já avançada, refletem o seu rosto nebulosamente. Penteia os seus cabelos escassos, procurando naquela imagem as marcas da crueldade do tempo. Mãos artríticas massageiam as gengivas desnudadas. A mente, ainda lúcida, experimenta um corpo cansado, dolorido…
Vinte e dois de janeiro marca a folhinha, dia do seu aniversário. Sim, seu aniversário, 82 anos completa ela neste dia. Anos que passaram como chuvas de verão, ou que foram longos como noites de inverno. Como que querendo ainda experimentar a vida, procura no armário um pouco de perfume e um batom, que não é usado há muito, por isso tem aspecto ressecado, assim como sua pele.
Dá aos lábios um leve colorido, sente um frio gostoso nas orelhas. Levanta-se, dirige-se ao quarto à procura de sua roupa melhor e de seu sapato novo. Coloca-os, tentando novamente sentir a vida. Na vitrola músicas antigas, muito antigas, lhe trazem memórias de outros aniversários.
Lá fora, na igreja, o sino toca triste, mostrando que para alguém a vida já terminou. Ela, então, se lembra de um tempo que em Deus muito acreditou. Sente saudades daquela época, mas não lhe incomoda mais a dúvida da eternidade. Volta ao espelho, esforça-se procurando o seu rosto, acha os seus olhos. Demoradamente os observa e pergunta a eles se é chegado o momento. O queixo balança respondendo que sim.
Na cozinha prepara o café forte e o mingau que compartilha todos os dias com Pintado, seu amigo de muitos anos.
Chama o cachorro pelo nome e Pintado, como que estranhando a sua voz ou percebendo suas intenções, late um latido chorado.
Do armário retira as três caixas, que têm sido suas companheiras há muito tempo. Os azuis são para o coração, os brancos para o reumatismo e os rosas, sua cor preferida, para dormir. Separa-os, conta-os: são mais que a sua idade, suficientes para os dois.
Na mesa café e mingau mudam lentamente de cor. Olha o retrato do marido, morto há muitos anos, dobra um bilhete, um resto de economia para uma afilhada distante. Coloca na vitrola sua música preferida, aquela que traz à lembrança os risos e as vozes tão familiares. Leva ao quarto o seu café e o pote de pintado. O cachorro a acompanha com medo e fome. Senta-se na cama e vagarosamente vai bebendo sua morte. Pintado vacila, chora. De repente, arrependida, levanta-se e com suas últimas forças joga fora o mingau. Volta e recosta-se na cama, ali termina o café lembrando de outros aniversários, onde não havia esse sentimento de solidão, vai devagarzinho despedindo-se da vida.
Pintado late desesperadamente.