Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Por Ariel Seleme
Julho de 1983, férias escolares. Resolvi viajar ao Chile. Queria conhecer a terra de Pablo Neruda, Victor Jarra e Violeta Parra.
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De ônibus saí de BH rumo a Montevidéo, de lá de navio para Buenos Aires e depois de trem até Mendonça. Fui obrigado a ficar na capital do vinho argentino por alguns dias.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Aconcagua trem de longa distância na Estação Mendoza 1990
A travessia de ônibus até Santiago estava suspensa devido à forte nevasca na cordilheira dos Andes. Dormia numa pensão em frente a rodoviária para checar todos os dias sobre saída de ônibus para Santiago. Com pouco dinheiro, procurei o restaurante mais barato da cidade e fazia uma refeição por dia, lá pelas 4 da tarde, emendando o almoço com a janta.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Foto principal de Ciudad de Mendoza
No último dia em Mendonça, quando fui almojantar no lugar me deparei com grande aviso na porta: Fechado pela Saúde Pública. Cheguei em Santiago as 5 da madrugada e segui a pé pela cidade procurando hospedagem. Passei pelo portão do estádio Nacional (onde milhares foram presos e outros tantos assassinados.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Estadio Nacional de Chile – vista desde Av. Grecia.jpg|thumb|180px|Legenda
Encontrei o hotel San Francisco, bom e barato. Meu turismo era ideológico. Fui ao cemitério onde estava enterrado Victor Jarra e lá fui abordado por um policial a paisana que me pediu documentos. Ainda era período da ditadura de Pinochet. Fui à casa de la Isla Negra, onde viveu e está enterrado Pablo Neruda. Entrei no estádio Nacional vazio e senti tristeza por tudo ali ocorrido. Por fim, fui à rua José Domingo Cañas 1367, onde ficava a antiga casa do meu amigo e professor Theotônio dos Santos.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Santiago do Chile
O local estava abandonado. Durante os primeiros anos da ditadura militar de 11 de setembro de 1973, foi centro de tortura da Dirección de Inteligencia Nacional – DINA. Retornando ao hotel passei pela porta da Universidad Católica de Chile. Escutei vozes e resolvi entrar naquele prédio antigo que tinha corredores que se assemelhavam aos nossos da PUC MG.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Casa Central Pontificia Universidad Católica de Chile.
Era assembleia de estudantes (uns 300 no total) com a tarefa de organizar manifestação contra o Pinotcho para o dia seguinte à tarde. Me apresentei como estudante brasileiro (na época era da diretoria do DA da FACE/PUC MG com minha amiga Eliana Vimieiro Pessoa). Me convidaram para falar à assembleia. Aceitei. Tinha medo de ser preso e expulso do país, mas falei. Não sei se me entenderam, mas aplaudiram.
O clima era tenso e claramente percebia-se a presença de policiais entre os estudantes. A grande manifestação de estudantes e trabalhadores ficou marcada para o dia seguinte as 6 da tarde, próxima ao palácio de La Moneda (sede da ditadura). Em 1983 o governo Pinochet estava acabando. Crise econômica, inflação e empobrecimento da população. Quando a economia do Chile cresceu, durante a ditadura de Pinochet, ela cresceu como rabo de cavalo, para baixo.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Augusto Pinochet
A economia crescia e as pessoas ficavam mais pobres. A ditadura chilena promoveu brutal concentração de renda, empobrecimento da maioria e esgotamento político. No dia seguinte, para impedir as manifestações, o governo decretou toque de recolher, a partir das 6 da tarde, em toda a Santiago.
Se a polícia encontra-se alguém nas ruas, após as 6 da tarde, a ordem era para atirar primeiro e perguntar depois. As 5 da tarde, sob protesto do porteiro do hotel, saí para caminhar pela cidade. Não iria longe. Ficaria perto do hotel e antes das 6 pretendia estar de volta.
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O hotel estava a poucas quadras do palácio de La Moneda. Resolvi ir lá. Todo mundo correndo, pegando ônibus cheios, taxis lotados, angústia e medo no olhar de todos. Pessoas andando apressadas, carros em alta velocidade, gente falando alto e militares armados para todos os lados. Quando cheguei no La Moneda já era 5:30.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Palácio de La Moneda, em Santiago, sede do Poder Executivo chileno.
As ruas desertas informavam, para os curiosos como eu, que o toque de recolher era pra valer. Passando pelo La Moneda lembro de um militar olhando no relógio e logo em seguido olhando para mim. Creio que pensava: “daqui a 30 minutos mando bala neste palhaço”. 5:40 resolvi voltar para o hotel. Comecei a correr. Ouvi gritos e sirenes. Resumo: me perdi. Não conseguia encontrar o caminho de volta.
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Perdido e o relógio marcando 5:50. Ruas desertas e eu correndo. De uma janela escutei alguém gritando: corre chico, el toque de queda comienza en diez minutos. Cagasso total. Quando entrei no hotel o relógio marcava 6 em ponto. O porteiro ao me ver exclamou: Madre de Dios. Graças a Dios. Pensé que no volverías. Fui ao terraço no último andar do prédio e lá estavam quase todos, a maioria estrangeiros.
O silencio total era esporadicamente quebrado por som de sirene. Santiago, apagada e em silêncio, esperava. De repente ouviu-se gritos e a cidade explodiu em panelaços. Milhões de pessoas gritando. Xingando Pinochet. Acendendo e apagando as luzes dos apartamentos e casas. Buzinas de carros. A cidade ficou assim por mais de 2 horas. Para o povo chileno a ditadura de Pinochet tinha acabado. Na manhã seguinte regressaria ao Brasil via Bolívia. Resolvi caminhar até onde tomaria o micro-ônibus para Antofagasta.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Ao sair do hotel vejo uma cena inusitada. Várias crianças, malvestidas e sujas (crianças que ficam em sinal de trânsito vendendo coisas), caminhando pela calçada e gritando: Gracias a Pinotcho viendo super ocho! Gracias a Pinotcho viendo super ocho! Gracias a Pinotcho viendo super ocho! Perguntei o que era aquilo, e me explicaram.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Pinochet
Com a miséria crescente no Chile, as crianças iam para as ruas vender um chocolatinho chamado Super 8. Graças ao Pinochet (Pinotcho) vendo super oito. Realmente, a ditadura de Pinochet tinha acabado.
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