Doutora e Mestra em Educação, Luciana Dornelles Ramos.
Uma vez ouvi esta frase em um evento do movimento negro, e ela me tocou profundamente… nós somos o sonho dos nossos ancestrais. Parece que quando a gente compreende esta mensagem, nossa vida passa a ter outro valor. A gente entende que pode viver pelos nossos, o que eles não puderam viver, realizar o que não lhes foi permitido realizar… a gente aprende que vale a pena sonhar.
O sonho de gerações de pessoas negras no Brasil foi a liberdade, um sonho que no contexto de escravização em que viviam, devia parecer muito distante, irreal, mas eles não deixaram de lutar, mesmo que muitos deles não tenham vivido essa liberdade. Acredito que foi o maior legado que deixaram para nós. E me pergunto, o que estamos fazendo pelos nossos, com a nossa liberdade?
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre
Quando olho para a minha família, e para muitas famílias pretas, vejo muitas histórias de avós que não puderam estudar, ou concluíram somente os primeiros anos da educação básica, mas que trouxeram o estudo como prioridade para seus filhos, nossos pais. Muitos deles, pararam no antigo “ginásio”, alguns concluíram a educação básica, e outros, com muita luta conseguiram fazer a graduação. Essa geração lutou muito nas universidades e fora delas, e graças a essas lutas hoje temos as cotas, e cada vez mais vemos histórias de pessoas negras que são as primeiras de suas famílias a concluírem o ensino superior. O acesso à universidade através das cotas, possibilitou que mais pessoas chegassem à graduação e a pós-graduação. Graças às ações afirmativas, a educação, que por tanto tempo foi negada para o povo negro, vai se tornando realidade. Essa luta pela educação, é mais um exemplo de legado que nossos ancestrais deixaram para nós, pois é uma luta histórica, com registros datados desde os tempos da escravização, pois nosso povo sempre acreditou na educação como forma de transgressão, o que a gente aprende, ninguém pode nos roubar.
Fonte foto – Arquivo pessoal da Dra. Luciana D. Ramos – Colegas da disciplina sobre bell hooks- Vanessa, Helena, Victor, Gabriel, Shirley, Luciana e Bruna
Podemos pensar em muitos e muitos exemplos dessas portas que nossos ancestrais abriram para a gente, e por eles, sempre quando inicio uma palestra, uma fala, peço a benção aos meus mais velhos, a benção aos meus ancestrais, que abriram muitas portas, portas essas que muitas vezes eles não puderam passar, mas que deixaram abertas para que a gente pudesse. E assim, cada geração avança mais, abrindo portas para que as gerações futuras possam ir cada vez mais longe.
Lembrei desta frase vendo os jogos Olímpicos. Quando pequena, treinei Ginástica Artística, no meu tempo Olímpica, no Grêmio Náutico União, mesmo clube onde treinou Daiane dos Santos. Naquela época, não havia muitos incentivos, a Ginástica era composta majoritariamente por pessoas brancas, era muito difícil para uma pessoa negra se manter no esporte. Não somente pela questão financeira, mas o racismo nesses clubes de “elite” era bem violento.
Fonte foto – https://agenciabrasil.ebc.com.br/esportes/noticia/2021-10/daiane-dos-santos-destaca-papel-da-educacao-para-o-futuro-de-atletas – Daiane dos Santos.
E imaginem o ódio da branquitude, que geralmente colocava seus filhos na ginástica com 5, 6 anos… quando chega Daiane, com 11 anos e um talento inegável, uma impulsão gigantesca, e a coragem de encarar seus medos e desafios de cabeça erguida. Só a Dai deve saber o quanto foi difícil, o tanto pelo qual ela teve que passar, mas ela fez história, foi a primeira brasileira a ganhar medalha de ouro em um Mundial de Ginástica, apresentou pela primeira vez o movimento duplo twist carpado, que foi batizado com seu nome, o “Dos Santos”, e nas Olimpíadas de Atenas em 2004, apresentou o “Dos Santos II”, o duplo twist esticado.
Fonte foto – https://terceirotempo.uol.com.br/que-fim-levou/daiane-dos-santos-5546
Hoje ouvi de uma colega uma pergunta que acredito que muitos brasileiros já se fizeram… “como a Daiane não tem medalha olímpica???” É uma pergunta justa, dada a grandeza de sua história, mas é olhando para a sua história que entendemos as dificuldades que ela viveu para chegar aonde chegou. Daiane não ganhou a sonhada medalha olímpica, embora merecesse muito, mas como nossos ancestrais, ela abriu portas. Abriu portas para que chegassem Jades, Rebecas, Lorranes, Flavinhas, Julias e tantas meninas que não conhecemos ainda, mas que ainda vão chegar. Buscando na internet vemos vídeos da Rebeca e da Lorrane pequenas, recebendo conselhos, ajudas e com os olhos brilhando diante da Dai, pois olhando para ela, como se fosse para um espelho, elas, desde pequeninhas se viam no topo também, ao olhar para a Daiane dos Santos elas acreditavam que podiam chegar lá.
Fonte foto – https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202407/mudanca-de-patamar-da-ginastica-brasileira-passa-por-investimentos-do-governo-federal – Rebeca Andrade, Flávia Saraiva, Jade Barbosa, Júlia Soares e Lorrane Oliveira.
Fiquei reflexiva, é lindo poder ver a história acontecendo na nossa frente, é lindo ver os nossos chegando aonde sempre deveriam estar, no topo, na excelência. É lindo ver o olhar das crianças vendo nossas mulheres negras brilhando, é lindo ver pessoas negras, mesmo com tantas dificuldades… se permitindo sonhar. Que legado… só podemos agradecer.
NÓS, SOMOS O SONHO DOS NOSSOS ANCESTRAIS.
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Fonte foto de Daiane – https://terceirotempo.uol.com.br/que-fim-levou/daia