Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
O Brasil vive um processo sofrido, mas interessante e instrutivo. O espetáculo político requer definição e reflexão. Vamos, peça por peça, tentar juntar a paisagem do quebra-cabeça. Depois, cada um contemple a trama armada e avalie se vale à pena entrar no jogo do golpismo.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Primeira peça: a eleição de 2014. Não era preciso ser analista brilhante para concluir que o Governo Dilma, reeleito, porém perdendo em Estados-guia da política – SP, e Brasília, e obtendo vitória curta na cidade e Estado do RJ, teria problemas sérios a enfrentar no horizonte próximo. Mesmo que o Governo tenha mais da metade do país atrás de si, o resultado foi percentualmente apertado. A alternativa liberal – tristemente apoiada por um lado Verde e “socialista” manchado de marrom em sua coerência política – ficou chorando o quase-quase da derrota curta e das privatizações perdidas…
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Interior do Superior Tribunal de Justiça em 2006.
Na primeira chance, parte o lado derrotado para uma virada de mesa imprudente, guiado pela miragem de um terceiro turno inconstitucional. Não hesita em provocar a instabilidade do país. É certo que o impeachment é um instituto democrático, previsto na Constituição Federal. O que não é certo é defendê-lo passados poucos meses da eleição, em desrespeito à maioria votante, com base em denúncias de criminosos confessos e antes de qualquer processo judicial, puramente porque o momento – trabalhado pelas empresas de comunicação – acende ambições oportunistas de retomada da “obra” interrompida há 12 anos: a liquidação de patrimônio coletivo.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Segunda peça: a economia em estagnação cíclica. Dê ao povo, e sobretudo à classe média, o direito de consumir, e logo informe que é preciso pagar a conta e apertar o cinto, e você terá um problema… Por outro lado, a prática neossocialista de abusar do corte de salários e de consumo para investir em infraestrutura tem seu custo e seus limites. Em sistemas revolucionários e totalitários, ainda dá para ir abafando a crítica. Na democracia, e mais ainda na democracia permissiva e mediatizada, o vozerio intolerante não é abafável. Ao contrário, a mídia se encarrega de amplificá-lo de forma potencialmente desestabilizadora. Não tem nenhum pudor de usar e insuflar, como massa de manobra, a juventude – cheia de energia, e escassa de informação isenta – pondo em risco sua integridade e sua formação de caráter.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Terceira peça: a mídia. É sabido que não há equilíbrio na imprensa brasileira. A balança tem um prato só. Quando havia um Governo neolib no poder, e o pensamento único era rei, a imprensa era uma máquina de impor versões. O entreguismo e o liquidacionismo viraram o caminho do sucesso, e ai daquele! que se atrevesse a contestar essa verdade. Mas logo vieram as crises internacionais provar que o voo de galinha das privatizações, além de contrário aos interesses populares, era curto, e a aterrissagem era dramática… Além disso, um pouco mais tarde, um momento histórico e revelador ocorreu nos EUA, na crise de 2008, quando o Estado salvou as grandes empresas privadas, estatizando-as… A imprensa emudeceu. Já não sobravam argumentos para defender a gestão puramente tubarã.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Quarta peça: a internet, que é, cada vez mais, parte da mídia. Pensemos na virada do século. Enquanto as empresas tradicionais de comunicação disputavam qual era a mais liberal e defensora do entreguismo, na web a coisa era diferente. A oposição surfava na insatisfação popular e punha a nu a falácia do neoliberalismo. Nas ondas de e-mails e correntes sociais, cresceu a figura de um Lula estadista, e de um PT que finalmente aprendera a compor-se com aliados. Quatro eleições foram ganhas pelo uso intenso e inteligente da liberdade da internet – único e potente freio ao poder da mídia tradicional. Passou o tempo, e a comunidade conservadora, amargando o jejum de poder, tentou aplicar o mesmo modelo e só agora, na crise política, consegue algum sucesso.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
No princípio, os posts de direita não encontravam o tom e alcançavam um poder de convencimento pífio. Traíam a artificialidade da prancheta política, ou o pensamento sectário de aposentados de 64, ou ainda a lógica irracional e agressiva de analfabetos políticos típicos. Mas a persistência premia… A situação de subdesenvolvimento é brutal e envolvente, e se torna mais tsunâmica ainda em tempo de crise. Com um mínimo de habilidade e má intenção, e mesmo destilando um excesso de agressão que não facilita a atração das pessoas sensatas, é sempre possível impressionar os impressionáveis explorando a realidade dura que nos cerca – que não é culpa de qualquer governo, mas sim da história de país colonizado. O fato é que, mais experiente e competente, a campanha da oposição, pela internet, acabou pegando embalo e conseguindo incorporar pessoas de boa fé à corrente da intolerância. Agiu rápido, e surpreendeu os adversários, que custaram e custam a reagir… julgando, talvez, que a tempestade é passageira.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Internet – The Tango! Desktop Project.
Quinta peça: Um primeiro Governo pós-Lula pouco comunicativo, com maioria de ministros opacos. Mas um Governo que, apesar de tudo, conseguiu manter a transferência de renda para a base social e o resgate progressivo da pobreza. Prosseguiu na tentativa (tímida, é verdade…), de fazer política industrial pró-Brasil. E foi, mesmo em tempo de crise, um Governo fortemente investidor. Tocou para a frente portos e aeroportos, Belo Monte (3a geradora do mundo), Jirau, Santo Antônio, Transposição, Norte-Sul, Pré-Sal e Copa do Mundo. É preciso não esquecer que, superada, com êxito de organização, a Copa do Mundo, 2014 é o momento de maturação da maior parte desses investimentos. Haverá, necessariamente, mais folga orçamentária, disponibilidade para investir.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Vista artificial da barragem. Usina de Belo Monte
Sexta peça: Os desfalques na Petrobrás. Diz o noticiário que a Polícia e a Justiça do Paraná (aliás, por que do Paraná?, se os crimes foram no RJ… fica a pergunta) descobriu que havia dois grupos sangrando a empresa: um de criminosos comuns que se aproveitavam das margens de margens de valor, criadas por trabalho duro, para apropriar-se, via propina, de recursos em proveito próprio; e outro de agentes políticos, recebendo doações sem registro para financiar máquinas de voto e representação. As duas práticas são condenáveis e graves. Não se equivalem, entretanto. Por mais que se tente mistificar, e por mais que seja preciso combater e punir os dois, o crime político não é igual ao crime comum. E há outro detalhe importante, que costuma ser convenientemente “esquecido” pelos agentes da crise.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
O longo histórico de denúncias da própria mídia brasileira permite facilmente apostar na obviedade de que essas quadrilhas não inventaram nada – herdaram engrenagens consolidadas que, ao longo do tempo, passaram (infelizmente) de mão em mão, de grupo dominante a grupo dominante, construindo, na surdina, um interminável drama nacional. Qual a diferença então, entre o presente e o passado? A diferença está em que três governos populares, ou populistas, como se queira chamar, para modernizar o país e na obstinação de criar emprego, abriram concurso, admitiram policiais, treinaram e equiparam as polícias a um nível tecnológico nunca visto. Resultado: as desonestidades públicas já não passam desapercebidas, como antes passavam.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Sétima peça: a herança histórica recente. A tese de que os crimes contra o patrimônio de agora não têm comparação histórica não resiste à simples menção da festa das privatizações, livre de investigações profundas como as que se fazem agora: a venda, em promoção, a uma ciranda de banqueiros, nos anos 90, de empresas públicas construídas com o sangue brasileiro e os recursos do BNDES. O crime maior foi entregar, para sempre, os bens públicos, eliminando fontes alimentadoras do orçamento do Estado, sob a alegação falaciosa de que o que é estatal não dá lucro… como se os países desenvolvidos não multiplicassem exemplos de estatais bem administradas e lucrativas, e como se, por tantos anos, empresas como a Petrobrás, a CVRD e a Eletrobrás não tivessem gerado a massa de recursos que geraram, em benefício da população. Apure-se tudo, puna-se quem tem de ser punido. Mudem-se as práticas. Mas não se falseie a teoria econômica. Nem se mude a história para culpabilizar apenas uma tendência política, fechando os olhos para as manipulações passadas.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Oitava peça: a herança histórica remota. A sociedade brasileira foi construída sobre pecados originais: a submissão violenta dos indígenas; a importação de escravos; a criação de costas raciais negra, mulata, “parda”, e “branca”, complexamente relacionadas em códigos imperfeitos de convivência e acesso a bens e direitos. A industrialização, o reforço do agrobusiness, a educação e a explosão demográfica aumentaram a interação, e até instalaram vias de trânsito interclasse. Mas não anularam o elitismo colonizado, iletrado e arrogante, que, para manter a estratificação cruel da sociedade e a concentração de renda, resiste a qualquer mecanismo sério de integração que se tente montar. A intolerância elitista (que não é unânime, diga-se) é um mal nacional a ser eliminado se o país realmente almeja um dia a ser socialmente integrado e desenvolvido.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Nona peça: O financiamento dos partidos. A direita liberal busca nas empresas, sobretudo multinacionais, seu combustível financeiro, que entra em troca de favores e da certeza de governo submisso. A esquerda populista descobriu que, para chegar ao poder, e conservá-lo, teria de fazer algo parecido. E dizem que fez. Mas, aí, de repente, o que, infelizmente era tolerado passa a ser crime! Só para a esquerda… Para o futuro, a única solução efetiva, abrangendo uns e outros, seria o financiamento público dos partidos, sob fiscalização rigorosa. Qualquer ingresso extra que se detecte, na contabilidade marota das campanhas seria automaticamente considerado um “caso de polícia”, a ser apurado tecnicamente – e não sob exploração política.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Peça décima: a influência externa. Buscando pressionar Cuba, indiretamente, as redes anticastristas e seus aliados, com anos de experiência em difundir ideias conservadoras para as massas latino-americanas, voltam suas baterias e seu poder econômico e informático contra os governos populistas da América do Sul. Desqualificam as obras de inclusão. Fabricam e aumentam acusações. Financiam a imprensa amestrada. Mobilizam, montam estratégias. Não devem ser subestimadas. São poderosas.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Catedral de São Cristóvão de Havana – Cuba
É esse o decálogo de peças que se embaralham e embrulham num fundo de crise e marasmo econômico, onde a linha de realizações dos governos populares bateu no teto da capacidade de induzir crescimento via transferência de renda a parcelas pobres da população. Foi muito, o que se fez nesses governos? Na verdade… não passou do início de um trabalho que só pode dar resultado consolidado a longo prazo. Na luta pelo desenvolvimento, não é suficiente provocar surtos de consumo e aquecimento econômico, ainda que longos, sem que haja metamorfose social definitiva.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Na gestão macro, houve muitas lacunas. Basta olhar em volta e ver que a favela continua no mesmo lugar, imponente, consolidada, martirizando seus moradores e comprometendo as cidades; as mesmas famílias sem nome nem vacina, dormem estiradas nas ruas, os mesmos menores de rua cheiram cola e vendem de tudo nos sinais, os mesmos catadores vagueiam pelos lixões da vida… Por que o Governo Popular não desfavelizou? Não mexeu nas estruturas profundas das cidades, do campo? Não promoveu um absoluto respeito à água e à floresta?
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – A favela da Rocinha no Rio de janeiro fica ao lado de arranha-céus e de regiões nobres da cidade. Com uma população de cerca de setenta mil habitantes é a maior favela do Brasil.
Não… Não foi o governo dos sonhos.
Mas conseguiu avanços importantes. Sobretudo, esteve anos-luz à frente dos que vieram antes e confundiram governar com liquidar patrimônio público, renunciar à atividade industrial, entregar recursos naturais, concentrar a renda e arrochar salários.
Agora, a hora é de decisão – tanto ou mais do que foi o momento recente, do voto na urna. De olho no futuro!
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Para uns, o momento é de repensar, dialogar, diagnosticar, convencer, aperfeiçoar, reciclar, somar. Para outros, o momento é de enfraquecer, atacar, difamar, desqualificar, sabotar, envenenar, debochar, perder a linha, insuflar o conflito, alimentar o ódio, provocar a violência. Isso é democracia? Cada um responda segundo sua consciência e responsabilidade. O que é certo é que não há salto de progresso sem confronto de ideias e síntese. Nesse sentido, é bom que o debate aconteça e que ninguém esconda seus argumentos.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Escolha seu lado. Dessa escolha depende a estabilidade e a recuperação da economia do país. Eu escolhi o meu: é pelo fim da turbulência e pela extensão de um crédito crítico de confiança ao mandato presidencial, e não pela derrubada e pelo saqueio. No cenário nublado da atualidade, a boa luta democrática é derrotar um tipo de “novidade”, que traz tanta volta ao passado embutida. Por enquanto, o fundamental é resistir, com inteligência e senso de justiça, ao golpismo… Depois será a hora de fazer um dever de casa necessário…
Por Ariel Seleme
Vice Cônsul do Brasil em Honduras – Embaixada do Brasil em Honduras