Foto – Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Quem conhece Belo Horizonte, conhece o Parque Municipal.
Agosto de 1983, Clarice, Jonas e pequena Nádia, de 5 anos, iniciavam o passeio na manhã de domingo. Dia especial, celebravam o aniversário da mãe e da filha. A “festinha” era modesta: domingo no parque com direito a algodão doce e passeio de burrinho, e mais tarde almoço na Cantina do Lucas (Clarice adorava o peixe à Comodoro por lá servido).
Desceram do ônibus nove e trinta da manhã. O parque já estava bem lotado. Primeira parada a roda gigante. A pequena Nádia gritava e sorria em plena alegria. Jonas resolveu tomar uma cerveja, pois era dia de festa. Clarice comia uma maçã do amor.
– Será que não estamos gastando demais? Clarice perguntou.
– Fique tranquila meu amor, fiz umas economias pra este dia.
– Papai, vamos no burrinho?
Lá foi Jonas com Nádia. Ela sentadinha no burrinho e ele por perto para a proteção.
O animalzinho era totalmente treinado, seguia seu caminho e retornava exatamente na hora marcada.
– Papai, vamos de novo?
Jonas contou o dinheiro na carteira. – tá bem minha filhinha,mas essa é a última vez.
Clarice sentada na grama com sua maçã do amor via o pai e a filha afastando-se no novo passeio de burrinho.
De repente uma voz, uma voz conhecida.
Uma sensação de terror tomou o corpo de Clarice. Ficou paralisada.
De repente um rosto, um rosto conhecido.
Clarice começou a suar frio. O estomago ficou rígido, as pernas tremiam. Ao reconhecer a pessoa, começou a vomitar. Em posição fetal Clarice deitou na grama e chorou, um choro baixinho com soluços de terror. Tudo voltava a sua mente. Aquelas lembranças enterradas no fundo da alma saltavam para fora. Terror.
13 anos antes, na porta da faculdade de direito da UFMG, Clarice foi presa. Na época atuava no movimento estudantil e participava da “Colina”, um grupo de esquerda que combatia a Ditadura Militar. Eram os anos de chumbo. Clarice foi torturada por mais de seis meses. Choques na partes genitais, afogamento, espancamento, abuso sexual, semanas e semanas trancadas em um quarto escuro. Foi amarrada e arrastada por um jipe pelo pátio do quartel do 12 RI. Nos porões do Dops, na Avenida Afonso Penna, pediu para morrer diversas vezes. Em função do espancamento teve hemorragia e diarreia de sangue por vários dias. Quase morreu de anemia.
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Nos últimos dias de tortura já não havia mais nada para ser contato ou revelado. A tortura continuava só para o prazer dos torturadores.
– Vamos matar está puta comunista.
– Cadela terrorista.
Sete anos depois Clarice foi solta no processo de anistia. Encontrou Jonas, amigo de faculdade, e logo casaram. A filha foi um milagre, pois com a tortura e os espancamentos o útero ficou seriamente comprometido.
Sua filha era sua tabua de salvação. Recorrentemente pensava em suicídio, mas tinha a filha e o futuro da menina para cuidar.
Naquele domingo no parque o destino fez cruzar no seu caminho o Capitão Tavares, um animal fardado que chefiava as seções de tortura em Minas Gerais. Tavares, que também estava com uma criança, não reconheceu Clarice. Ela era apenas mais uma de suas vítimas (quem faz o mal não se lembra como quem sofre o mal).
Quando Jonas e Nádia regressaram do passeio viram um pequeno grupo socorrendo alguém. Era Clarice. Nádia chorava assustada. Jonas abraçou e levantou a mulher que tremia e suava frio.
Percebeu que a calça da esposa estava urinada.
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– mamãe, não morre mamãe…não morre mamãe! Gritava a pequena menina.
Jonas, Clarice e a filha saíram do parque lentamente.
Clarice abraçada à Jonas soluçava e andava muito devagar. Já no portão Clarice olhou para trás e reviu o Capitão Tavares sorrindo e brincado com uma criança. Fumava e bebia cerveja. A criança chupava um enorme sorvete. Para eles a vida seguia normalmente.
Há muitos anos que não tenho mais contato de Jonas e Nádia. Clarice se matou em 1987.
Jonas casou de novo 1990 e dizem que vive com a nova esposa e com a filha Nádia em Bom Jesus da Lapa no interior da Bahia.
Vendo Bolsonaro e outros idiotas defendendo a Ditadura Militar me da um nojo profundo.
Outro dia, conversando com um amigo americano, fui perguntado: – é verdade que a presidente do Brasil foi terrorista?
Respondi com uma pergunta: – o que você faria se um general tirasse Obama do poder, fechasse o congresso, acabasse com a liberdade de imprensa e abolisse os partidos políticos aqui nos Estados Unido? O que você faria?
Resposta do americano: -eu pegaria em armas contra o tirano.
Foi o que muitos brasileiros fizeram.
Viva a democracia brasileira. Ditadura, nunca mais.
Por Ariel Seleme