Foto – Arcevo do Valter Aleixo – Horto Florestal em Goiânia
Por Valter Aleixo
Nos fins-de-semana, o horto florestal de Goiânia ficava lotado de visitantes. Eram de todos os tipos: jovens, adultos, famílias; pequenas e numerosas, vendedores e oportunistas de todas as espécies.
Foto – Arcevo do Valter Aleixo – Horto Florestal em Goiânia
Certo dia apareceu um senhor japonês por lá, com um jovem garoto, que o acompanhava.
Chegaram até o bambuzal, ao lado da escadaria que dava para o Lago das Rosas, e o senhor japonês foi logo fazendo um círculo no chão batido, com um pedaço de pau. Em seguida, abriu uma sacola que tinha dois pares de luvas de box.
Foto – Acervo do Valter Aleixo – Horto Florestal em Goiânia
As pessoas, curiosas, foram se aproximando. O senhor japonês explicou que estava ali para fazer apostas; que convidava qualquer garoto para lutar com o seu boxeador, o garoto que o acompanhava, naquele círculo, e que as apostas começavam a partir de Cr$5,00 cruzeiros por luta.
Foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
As pessoas se entreolharam, aguardando o primeiro voluntário.
O lutador do senhor japonês era um garoto franzino, cara fina, e sem grandes pretensões. Não disse uma só palavra desde que chegou naquele lugar. Parecia ter uns nove anos, como eu.
Fonte – Pintura do Genial artista brasileiro Tony Paraná
Após alguns minutos, apareceu o primeiro garoto. O senhor japonês ajudou-o a colocar as luvas. O seu garoto já tinha as suas colocadas.
Apostas feitas quase iguais para ambos os lados, começa a luta.
Foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Após poucos segundos, o garoto de senhor japonês, que contava com golpes fortes e precisos, já tinha ganhado a luta do primeiro voluntário, que quase não teve reação.
Em seguida apareceu outro garoto, que acabou tendo o mesmo destino, perdendo a luta logo no começo. Um terceiro garoto resistiu um pouco mais, mas acabou perdendo, igual que seus antecessores.
Meu tio Antônio, assistindo à tudo aquilo, resolveu que o sobrinho dele – sim, eu mesmo! – ia participar também.
Foto – Acervo do Valter Aleixo – Tio Antônio
– Aposto que cê pode quebrar a cara desse guri! – foi me dizendo.
Achei que o meu tio tinha ficado louco! Como ia lutar com um garoto pugilista que havia ganhado todas as lutas até aquele momento? Além disso, eu jamais tinha lutado box na minha vida.
– Vamos lá, mostre pra esse moleque que ele num é de nada! – me incentivou meu tio.
Apesar de estar aterrorizado, não queria decepcioná-lo, pois ele parecia ter bastante confiança em mim.
– Quero que cê faça de tudo pra ganhar. Se precisar, jogue até terra nos olhos dele – me aconselhou.
Embalado pelo entusiasmo do meu tio, e imaginei que, após três duelos, o garoto já deveria estar cansado e a luta já não seria tão difícil assim.
Foto – Acervo do Valter Aleixo – Valter Aleixo
Aceitei a proposta.
Meu tio virou-se par o senhor japonês e disse:
– Aposto que esse menino num ganha do meu sobrinho – com um certo tom de convicção e arrogância.
Sem hesitar por um momento, o senhor japonês pergunta:
– Quanto o senhor quer apostar?
– Dez cruzeiros – disse meu tio, autoritário; confiante.
– Aceito! – respondeu, enfático, o senhor japonês.
Diante da confiança exagerada do meu tio, a maioria das apostas foi ao meu favor.
Luvas postas, começa a luta.
Fonte – Pintura do Genial artista brasileiro Tony Paraná
Não tive nem tempo de reagir e o garoto já estava dando socos por toda parte do meu rosto: vinham da direita, da esquerda, por baixo, por cima; por todos os lados! E eu esperando uma trégua para reagir. Que nada! Os sopapos vinham sem parar e eu ficando cada vez mais atordoado. O garoto, implacável, não me deu a menor chance.
Finalmente caio no chão com o rosto pegando fogo; catarro escorrendo pelo nariz e lágrimas descendo pelo rosto.
Foto fonte – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Atordoado, mas, por um breve segundo, lembrei-me do que disse meu tio: “se precisar, jogue até terra nos olhos dele”. Desesperado, tento apanhar um pouco de terra, mas as luvas não me permitem. São grossas demais! Não consigo pegar nada!
E tome mais bordoadas!
Os olhos começam a inchar e os lábios, partidos, a sangrar profusamente. Já não enxergo quase nada!
A turma do deixa-disso, incluindo meu tio, finalmente reage, e vêm ao meu socorro.
Meu tio, consternado e, ao mesmo tempo decepcionado, especialmente por ter perdido os seus Cr$10,00 cruzeiros, abaixa-se e me diz:
Foto fonte – Wikipédia, a enciclopédia livre.
– Seu bosta! – num falei que se precisasse, poderia até jogar terra nos olhos dele? Cê podia ter dado pezada; cuspido na cara dele; podia fazer o que quisesse, mas tinha que ganhar! Cê feiz eu perder dez cruzeiro – falou, indignado.
Sua pergunta e comentários ficaram sem resposta. Estava muito humilhado, machucado e decepcionado para dar-lhe qualquer tipo de explicação. Sentia-me culpado de tê-lo feito perder seu dinheiro e, mais que tudo, sua confiança.
Foto – Arcevo do Valter Aleixo – Valter Aleixo
As pessoas que ali estavam, escutaram o que ele disse e lhe perguntaram por que ele mesmo não lutava, se gostava tanto de luta, ou “será que era covarde?”
A palavra “covarde” pareceu atingir-lhe como uma martelada na cabeça: ninguém, mas ninguém mesmo, ia questionar a sua coragem e seu machismo. Era maranhense dos machos; macho mesmo! E, lá na sua cidade natal de Viana, matavam até por muito pouca coisa!
Com o seu brio questionado, levantou-se e disse que lutaria com quem quer que fosse e até dobraria a quantia da aposta.
Tirou o dinheiro do bolso e ficou desafiando a todos, gesticulando com o braço.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Silêncio total.
O meu tio tinha intimidado a todos. Tinha deixado todos apavorados.
Todos… menos um.
De repente, um senhor negro alto, do tipo humilde e calado, toma um passo adiante e diz:
Fonte – Pintura do Genial artista brasileiro Tony Paraná
– Aceito!
O senhor japonês, satisfeito, imediatamente começa a colocar as luvas no meu tio.
– Minha aposta é para o oponente – foi logo dizendo para o meu tio.
– O problema é seu – disse meu tio – com ar de que não só iria recuperar o dinheiro perdido do sobrinho, mas, também, ia ganhar dez cruzeiros.
Em seguida, o senhor japonês coloca as luvas no adversário.
Apostas feitas, começa a luta.
Meu tio começa a pular de um lado para outro, com o senhor negro só acompanhando seus movimentos. Meu tio dava seus socos e o senhor negro apenas se defendia.
Foto – Do Genial artista brasileiro Tony Paraná
Depois de algum tempo com aquela dança, o senhor negro finalmente deu um soco, fulminante, na cara do meu tio que o fez cair, duro, no chão.
Escutou-se um ohhh…
Quando o vi no chão, imóvel, achei que ele tinha morrido! As pessoas, curiosas, se acercaram querendo ver o que tinha acontecido com ele.
Os segundos seguintes pareceram eternos! Ele ficou lá, quieto, como um defunto, com a cara no chão.
“Acho que morreu mesmo”, pensei. Mil e uma coisas se passaram pela minha mente: fiquei imaginando o que diria à nossa família sobre a morte do meu tio – e, também, da reação deles: “Que história maluca era aquela de desafiar alguém para lutar box se nunca nenhum dos dois tinha passado nem perto de uma academia?”
Fonte – Pintura do Genial artista brasileiro Tony Paraná
Mas, para a minha surpresa e alívio, ele, aos poucos, foi dando sinal de vida.
O senhor negro, todo preocupado, o ajuda a se levantar.
Atordoado, meu tio não sabia se tinha sido atropelado por um boi ou atingido por um raio – ou ambos.
Após alguns segundo voltou completamente a si e deu-se conta do que havia sucedido.
Tive uma grande vontade de perguntar-lhe por que ele não jogou terra nos olhos de seu oponente; por que não o chutou e cuspiu na sua cara?
Voltamos para a casa em silêncio.
Talvez não fosse o melhor momento para aquelas perguntas.
Por Valter Aleixo.