Pintura do genial artística brasileiro Tony Paraná – Com residência em Houston, Texas
O tempo é cruel e implacável e, aos poucos, as imagens do nosso passado vão se dissipando da nossa memória, até se tornarem apenas lembranças confusas e distantes; porém, momentos especiais parecem perdurar para sempre. E é disso que me lembro, quando soltava pipas com o meu pai.
Por Valter Aleixo
Primeiro, íamos cortar bambu, no matagal do horto florestal; depois, íamos comprar papel, cola e linha. Meu pai, laboriosamente, fazia suas belas pipas; umas verdadeiras obras de arte, com seu assistente: eu. Às vezes, passávamos horas trabalhando naquilo. De vez em quando me pedia que lhe passasse a tesoura, o papel, a cola ou o bambu.
Pintura do genial artística brasileiro Tony Paraná – Com residência em Houston, Texas
Não tinha nada melhor para mim do que passar momentos tão preciosos com o meu pai. Naqueles momentos, ele era uma pessoa calma e passiva. Parecia que ele se esquecia dos seus problemas; de suas brigas com minha mãe; de seus ímpetos de irracionalidade. Eu adorava quando se comportava assim, fazendo com que as coisas simples da vida, para uma criança de oito anos, fossem tão especiais.
Fonte – foto Valter Aleixo
Quando prontas, íamos soltar as pipas na rua de chão batido acima do horto florestal, passando horas a fio brincando com aquilo. Parecia que ele voltava a ser criança. Ficava solto, leve, como se fosse voar com as pipas. Ia até no final da rua e, com sua corrida desajeitada, segurava o bolso da camisa para que seu maço de cigarros Continental não caísse; acelerava a corrida e ia soltando a linha da pipa aos poucos, até ela subir bem alto.
Pintura do genial artística brasileiro Tony Paraná – Com residência em Houston, Texas
Às vezes achava que ele ia desmaiar, tamanho era o seu esforço. Ficava quase sem ar. Mas ele as levantava. Depois, quando já estavam bastante altas e com o voo estável, passava a linha para eu segurar.
– Segura firme, num solta, não. Cuidado pra linha num quebrar, viu? – me prevenia.
Eu ficava lá, soltando aquela pipa; majestosa com sua rabiola longa, parendo desafiar o firmamento. Voava livre de um lado para o outro.
Pintura do genial artística brasileiro Tony Paraná – Com residência em Houston, Texas
Às vezes, outros garotos vinham soltar suas pipas no mesmo momento e travávamos verdadeiras batalhas no céu. Meu pai colocava cerol na nossa linha, que era vidro triturado com cola, e manobrava a pipa de maneira que ela acabava entrelaçando-se com a linha do desafiante, cortando-a com seus afiados vidros. Meu pai se entusiasmava tanto que, às vezes, de tanto tentar cortar a linha do adversário, acabava cortando os próprios dedos em vários lugares. Mas isso, aparentemente, não lhe importava. A satisfação de estar fazendo aquilo de que gostava – e com o filho – parecia lavar-lhe a alma.
Pintura do genial artística brasileiro Tony Paraná – Com residência em Houston, Texas
Minha mãe ficava brava com meu pai por usar o amassador de alho dela para triturar o vidro. Dizia que aquilo era perigoso; que podíamos acabar engolindo vidro acidentalmente. Mas isso de nada adiantava; todas às vezes que precisava, ele ia lá e pegava o amassador de alho e fazia tudo de novo.
Quando o vento ficava muito forte, a linha das pipas acabavam rompendo-se. Eu, e alguns dos meninos, saíamos correndo em disparada atrás delas, acompanhando-as no céu, com o vento soprando-as cada vez mais distante. Às vezes, pousavam em algum terreno baldio; às vezes, se enroscavam em cima de telhados e, outras vezes, desapareciam no espaço. Eram levadas para bem longe. Certamente algum garoto as encontrava e divertia-se com elas tanto quanto eu e meu pai.
Pintura do genial artística brasileiro Tony Paraná – Com residência em Houston, Texas
Um dia, fiquei observando ele empinando uma pipa, num final de tarde, com o céu avermelhado no horizonte, parecendo uma labareda. Ele estava calmo e descontraído. De vez em quando dava puxões na linha, fazendo com que a pipa dançasse como uma bailarina no céu. Fiquei imaginando se aquilo não era algo que ele quisera ter feito com o próprio pai; o pai que jamais tivera a oportunidade de conhecer.
Pintura do genial artística brasileiro Tony Paraná – Com residência em Houston, Texas
Havia apenas ouvido falar o seu nome e escutado suas histórias em diversas ocasiões. Centenas delas. Mas nem foto dele tinha. Sabia que seu pai gostava de jogar futebol. Talvez até gostasse de soltar pipas também… mas ele jamais ia saber.
Mais tarde, recolhemos a pipa, e fomos embora.
Por Valter Aleixo