Por Adinaldo Souza.
Sou Gislene Maria de Jesus Alves, advogada, tenho 27 anos e graduanda de ciências sociais na Universidade Federal da Paraíba, nasci e cresci na zona norte de São Paulo, no bairro Jd. Peri Alto. Gostaria que a minha história não se comunicasse com tantos outros jovens negros, que como eu, flexionou o verbo viver para resistir, por isso, talvez soe apenas como mais uma versão.
Com dez anos de idade, já estava à sorte pela perda precoce dos meus pais. Minha mãe Derlene Maria de Jesus Alves teve sua vida ceifada muito jovem, com apenas 37 anos, por uma doença que hoje é inteiramente prevenível e possui muitos recursos para o tratamento. Meu pai Abel também perdeu sua vida no contexto de violência a que somos submetidos nas periferias das cidades.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
É nesse contexto que meus irmãos e eu somos colocados em famílias diferentes, somos nove e cada um de nós ficou com um familiar ou pessoas próximas. Fui adotada pelos meus tios Claudinei de Jesus e Wilma Maria, que aceitaram o desafio mesmo sendo jovens. Na época, eles já tinham um filho, o Kauã, e anos depois a Gabrielly Amanda, essa é minha família de coração que me acolheram. Morei com eles até mudar para o interior de São Paulo, quando casei com meu esposo Luciano Gomes.
Meus tios Claudinei e Wilma
Estudei integralmente na escola pública do bairro Assis José Ambrósio, fiz uma breve passagem pela escola técnica Maria Augusta Saraiva, na oportunidade me formei em técnica em serviços jurídicos, primordial para minha escolha pelo direito. Em 2014 ingressei o curso de direito na Universidade São Judas Tadeu, as dificuldades de aprendizagem ficaram evidentes, o ensino público defasado me pôs a muitos passos atrás ao que era exigido de mim naquela fase, foram de muitos momentos choro, um desses episódios que consigo reviver ao recordar, é estar lendo um livro e não conseguir entender os parágrafos, o desespero bateu e chorei por longos minutos, inspirei e soltei o ar e o encarei novamente.
Foi assim que levei toda minha graduação, ao ferro e fogo, certamente, o maior desafio que enfrentei, a realidade suplicava para que eu desistisse, mas aquela era a oportunidade que mudaria o meu destino, então, não tinha escolha senão persistir.
A pessoa mais importante no meu processo de formação foi meu irmão Leonardo, temos praticamente a mesma idade, mas era ele que me dava o dinheiro do transporte e do lanche. Ele tinha dinheiro para me dar e financiar meus estudos porque parou de estudar e começou a trabalhar muito cedo para sustentar a casa. Como disse, ficamos à sorte e não tivemos a mesma. Só existe uma advogada e uma potencial poetisa porque o Leo investiu em mim. Pela insistência, as dificuldades viraram habilidades. Sou fruto das cotas sociais e raciais, sem as quais estaria exatamente no lugar em que a sociedade separa para uma pessoa preta. (Meu irmão Leonardo de Jesus Alves.)
Depois que fui apresentada aos livros do Frantz Fanon, passei a ansiar pelo autoconhecimento enquanto mulher preta. As poesias fazem parte desse processo e é o modo pelo qual compartilho minha experiência em conhecer minhas origens, que por vezes tem sido dolorosa e em outras um alento. Há um lado que emerge da indignação, mas em contato com a cultura, com as cores, a alegria e as belezas naturais da África e dos afrodescendentes, sou preenchida pela emoção, não tenho outro sentimento senão o orgulho, então as palavras mescladas em críticas e reverência à minha ancestralidade incorporam a minha escrita. (Meus irmãos de criação e coração Kauã e Gabrielly )
Há alguns anos, buscava timidamente a autoaceitação, primeiro ao deixar os fios naturais, depois em situar as consequências do racismo em nossas vidas, esse processo foi acelerado quando tive a oportunidade de conviver com a Dra. Carla Thamu. Estava materializado nela o audacioso caminho que pretendia trilhar, hoje tenho metas ambiciosas, justamente por canalizar a confiança e o entusiasmo que depositados em mim.
A escrita é uma forma de reverberar nossa beleza, nossa força e exaltar a consciência negra para que possamos celebrar nossa cultura.
POESIAS
NÃO SOMOS INIMIGOS
Não somos inimigos, apesar de ter provado da sua fúria
Não somos inimigos apesar de ter roubado nossa riqueza
Não somos inimigos, apesar de ter-me raptado da minha terra
Não somos inimigos,apesar de ter-se apossado do nosso solo sagrado para erguer seu maldito império
Não somos inimigos, apesar de ter sabotado minha cultura
Não somos inimigos, apesar de ter arrancado minha humanidade
Roubou meu corpo do paraíso e o levou ao porão de escuridão
Apesar de privar-me da liberdade, não somos inimigos
Apesar de tentar silenciar-me
Apesar de tentar apagar minha identidade
Não, não somos inimigos
Apesar de ter sido cruel com meus ascendentes, não somos
Apesar da distância que se estabeleceu entre nós, não somos inimigos
Apesar de negar minha existência, não somos
Apesar de negar minha essência, não somos
Apesar de negar minha descendência, não somos inimigos
O que sou não me permite o ressentimento
Não permite o rancor
Pois sou fruto do que sobrou
Sou aquilo que resistiu
Apesar das dores, o amor resistiu
Só o amor poderia resistir
Desfeita, me remonto
Em cada peça, memórias que o tempo não apagou
Memórias que exigem reconstrução
Arrancou minhas raízes sem pudor para aquecer sua fria ganância
Não somos inimigos, apesar de negar minha existência
Recontou minha história ao avesso
Tentou imprimir na minha doce imagem a maldade que te recobre
O ser de que todos têm medo, na verdade canta o amor
Celebra as raízes que resistiram firmes
E anseia pelo fim das guerras
Das guerras criadas e das internas
A guerra interna que você criou em mim, já travei a batalha pela autoconhecimento
E a cada vírgula que leio sobre meu passado, me remonto em sorrisos
Se a maldade tem cor, ela não é preta
SOMOS MUITOS
Hei, você não pode agredir o irmão desta forma
Antes que pudesse dizer algo mais
A vítima daquela fúria, desta vez, era o meu corpo, mais uma vez
Meu corpo negro cuja alma já contém marcas dessa violência
Violência que sempre encontra nossos corpos
O cacetete
A bala
O chicote
Nossos corpos negros
Desta vez, as mãos brancas do Estado pesava sobre o meu corpo com tanta fúria que quase desfaleci
Sozinho não consigo!
Chamem o leão que há muito despertou para proteger este corpo que sangra
Deixado para morrer aos olhos do agressor
Até que ouvi o leão furioso rugir
Não tive dúvidas quando vi seus cabelos ruivos
Nessa altura muitos irmãos já aguardavam apostos
Todos rugiam furiosos
Prontos para atacar
Desta vez, o agressor recuou
Não teve alternativa
Recuem todos os agressores dos nossos corpos
Recuem!
Minha alma ficou novamente marcada
Desta vez, pelo meu inestimável valor
A demonstração da fúria dos irmãos
Mostrou o valor do meu corpo negro
Não me deixaram aos lobos
Estou vivo e o agressor acuado
Avisado sobre a força da nossa união
Nossa ligação secular de luta e sobrevivência
SONHOS INACABADOS
Já vi muitos amigos ficarem trás
Muitos talentos
Aquelas mãos com potencial para artista plástico
Mãos talentosas cederam a necessidade da sobrevivência
Seu talento foi da tela ao trabalho braçal
Seu talento, uma preciosidade em estado bruto esperando a lapidação
Que tardou em chegar
O tempo e a necessidade ruíram seu talento e amargou a persistência
A qualificação é luxo e o trabalho condecorado
Faça qualquer coisa, mas traga o pão à mesa
Alguns irmãos entenderam errado e hoje não mais contam suas histórias
Minha pele negra agora mais negra queimada do sol
No meu rosto traços negróides, amargura e cansaço
Me orgulho do trabalho, mas a realidade me indigne
Não reclame, apenas seja homem
Meu talento agora é mexer massa
Essa é a realidade, minha realidade
Só não aceito que me digam que devo me igualar aos boys do carpete
Que ironia, sua sala de estar é o mesmo da minha casa
Aqui amontoados, lá no ar condicionado
Meu talento?
Há muito roubado pela hipocrisia da sociedade
Talvez não consiga furar a bolha
Hei, vocês pretos que emergiram, nos representem
Estou no exato lugar que preparam para mim, mas vocês alcançaram a posição que nos negarem
Contrariou todos e tomou o seu lugar
Nosso lugar por direito
Sonhos inacabados, talvez inalcançáveis
Minhas mãos agora calejadas, aplaude o seu sucesso
Tomem suas posições, ocupem nossos lugares
Esse lugar de prestígio
Essa cadeira confortável foi feita para você
Sente-se
Estampe em seu rosto seu melhor sorriso
Incontáveis gotas de suor
Orgulhe-se
Seu sucesso chegou e me representa
PRETOS E POBRES
Caros colegas,
O processo de autoconhecimento é doloroso.
É uma atividade permanente.
Quem ou o que me desconstituiu ao ponto de eu não me conhecer?
Ao ponto de não querermos ser pretos?
Constantemente precisamos reafirmar que somos capazes.
Quem disse que não somos?
É extremamente desconfortável estar em algum lugar no qual não nos sentimos bem vindos.
Somos intrusos!
É desolador nos vermos sempre servindo e limpando.
Ainda.
Representatividade para quem?
Em pleno século XXI recebemos olhares de desprezo.
Não são racistas, mas votam em racista.
Conta outra.
Com a desculpa de neutralizar o perigo, nos sufocam até a morte.
Os fuzis do Estado apontados para nossos corpos.
Nossos corpos pretos e pobres!
Afinal, quem liga?
Quem liga se somos mortos ou desprezados?
Quem liga se não somos amados?
Eu, Gislene, ligo!
Jamile liga!
Enfim, nós ligamos.
Tanto ligamos que lemos Fanon.
Tanto ligamos que não nos calamos.
Tanto ligamos que sentimos na pele e na alma essa violenta dor.
Dessa violenta política.
Política que mata.
Matam pretos porque são pretos.
Matam pobres porque são pobres.
Pretos e pobres!
Ouçam: pretos e pobres!
Marginalizados.
Favelados.
Quem liga?
Eu ligo!
Por que não parece suficiente ligar?
Então, eu choro.
Choro porque a minha indignação salta aos olhos.
Choro porque terminarei sem poder contar o final feliz.
Simplesmente porque ele ainda não chegou.
Então, seguimos…
Aflitos e com lágrimas nos olhos.
PARA UMA MULHER PRETA
Preta,
Do sorriso largo.
Da fé e da coragem.
Digo a você o que quero que digam a mim.
Não se deixe banalizar.
Não reconhecem o seu valor.
Seu verdadeiro valor.
Sua pureza e seu amor.
Sim.
Minha sutileza exalta a sua.
Fizeste-te forte para enfrentar o mal.
Eu sei.
Às vezes me pego na defensiva.
Também.
Mas também sei a razão da luta.
Então.
Minha nobreza exalta a sua.
AOS MEUS COLEGAS DE PROFISSÃO
Tudo é seu
Tudo ao seu alcance
Tudo é seu
Até as obrigações
Neste momento
Obrigação
De reprimir o mal
Bem diante dos seus olhos
Veja
O mal, bem diante dos seus olhos
O mal em todas suas formas
Suas feições
Seus discursos
Na política
Na polícia
No Estado
Ali
Logo ali
Bem diante dos seus olhos
Veja a forma do mal
Veja sua forma
Veja a forma que tomou
Dessa vez
Se revestiu de retórica
Para nos dividir
Então
Combata-a
Não associe-se
Não esqueça de seu juramento
Do juramento que fez
Bem diante dos meus olhos
Não se engane
O mal se revestiu de bem
Bem diante do seus olhos
Não se engane
Avante
Combata-a
UM ENCANTO
Minha cor destoa do branco
Olhe e veja
Minha cor é a melhor expressão da perfeição
Minha cor, sua cor, nossas cores
Nossa diversidade me encanta.
Jambo é cor?
Conheço por fruto
Somos tantos, tão diversos
Que precisam inventar cores
Minha cor marrom me encanta
O seu retinto me encanta
Você é um encanto!
É a perfeita expressão de uma obra de arte – única!
Suas formas, sua feição, sua cor
são únicas!
O que te faz especial
Sinta-se assim
Pois é assim que te vejo
É assim que me vejo
Especial
***
Por Adinaldo Souza.
Fonte da foto que ilustra as poesias – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Que história de superação, uma.tristeza em saber que muitos jovens de periferia que estão espalhados por esse Brasil sofre o mesmo desprezo e descaso da sociedade são poucos que conseguem continuar e trilhar um caminho melhor
Parabéns Gi vc serve de inspiração para.muitos jovens meninos e meninas pretas que vive um sonho de ter uma vida melhor e mais digna
Sua grandeza de espírito está materializada nestes lindos versos. Saiba que é uma honra tê-la em meu convívio. Vida que inspira…
A opressão é como pedra sobre um broto. Ela tira a luz, sufoca, aperta, prende e até mata. Mas os que vencem, têm os ramos mais fortes. As dores engrossam a casca, nos tornam mais resistentes e, paradoxalmente, mais sensíveis às dores dos pares. Você já é esse ramo forte, Gi. E a partir de você, sei que teremos mais flores que pedras. Parabéns!!!
Parabéns Gi vc lutou e conseguiu eu apoio vc em tudo . Vc merece tudo q há de bom nessa vida. Passou por tantas tristezas mas agora é HR de colher frutos do seu trabalho