Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Por Valter Aleixo
Já tinha passado por aquilo uma vez. O sargento pediu que tirássemos as nossas roupas e que nos preparássemos para o exame físico. O médico examinou os nossos dentes, ouvidos, nariz e pediu que nos despíssemos. Agarrou os nossos testículos com as duas mãos – e nos pediu para tossir. Acho que estava vendo se tínhamos algum tipo de hérnia ou coisa parecida. Após selecionar os novos recrutas, nos ‘convidaram’ a doar sangue.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Pavor generalizado! Pediram que fizéssemos uma fila em frente à mesa com cadeiras onde estavam os equipamentos e duas pessoas vestidas com roupa de hospital. Esperei para que os apressadinhos de sempre fizessem a fila e fui para o último lugar. Em seguida, escutamos:
– Ei, você aí no fundo, vamos começar por você! – disse um dos senhores sentados à mesa. Congelei! Fui o primeiro a doar sangue e, apesar do meu pavor, tudo saiu bem.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Jovens se apresentando para recrutar o Exército Brasileiro
Quando espetaram um outro recruta, um rapaz franzino, meio pálido, ele começou a desmaiar e a convulsionar. Alguém mencionou que ele tinha aversão à agulha e sangue. Veio o sargento e, imediatamente, pediu que o sentassem numa cadeira, com a cabeça e braços para baixo, entre as pernas; e que o segurassem naquela posição. Após alguns segundos, o rapaz, aos poucos, foi se recuperando.
No ano anterior, eu tinha passado pela mesma experiência, mas consegui que me liberassem, mostrando-lhes um documento de que tinha sido aceito para estudar nos Estados Unidos, através de um programa de intercâmbio cultural.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre
– Quando você voltar, venha nos ver outra vez, viu? – me avisou o sargento. – Tinha um ar sardônico quando disse isso.
Fomos levados para Brasília; para a Cavalaria Presidencial, onde a maioria dos soldados que estavam lá, era alto e loiro. Tinham vindo do Paraná e Santa Catarina. Nos disseram que na Cavalaria Presidencial só aceitavam soldados altos e bem fisicamente. Fiquei lisonjeado com o “alto e bem fisicamente”, mas logo fiquei sabendo que goianos não eram benvindos por lá. Isso ficou evidente quando tentaram cortar o cabelo de um dos recrutas de Goiânia com uma baioneta, que é aquela pequena espada que se adapta à ponta do fuzil. Sorte do rapaz que o sargento chegou a tempo de evitar aquele ato violento.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Depois que rasparam nossos cabelos com o barbeiro do quartel, o sargento nos mostrou nossas acomodações, que eram salões com camas beliche por todo lado; nos deu nossos uniformes e nos pediu que nos apresentássemos no pátio do quartel.
No pátio, perfilados, ouvimos do alto-falante uma voz de homem que anunciava, em ordem alfabética, para qual pelotão tínhamos sido designados. E foi categórico: “quem errar o pelotão, vai passar a noite inteira lavando banheiros!” Ao chegar na letra jota, a voz pediu que todos os “Joãos e Josés” se separassem do grupo, e quase metade saiu, indo formar um novo pelotão.
Não me lembro de alguém ter ido para o pelotão errado. Acho que a ameça deixou todo mundo muito atento – e assustado.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Uma outra voz surgiu no alto-falante que se apresentou como coronel fulano de tal, que já não me lembro o nome. Ele nos deu as boas vindas e acrescentou que deveríamos nos considerar muito afortunados; que aquela era uma oportunidade única; que tinha certeza de que nossos pais, aqueles que não tiveram a mesma sorte, gostariam de estar ali; de poder servir a sua Pátria; de poder se transformar em homens de verdade; algo que, talvez, sempre tivessem lamentado em suas vidas, e que agora podiam viver essa experiência através de seus filhos. Terminou dizendo que aquela seria, sem dúvida, a maior experiência da nossa vida.
Apesar daquele discurso enaltecedor e patriótico, tudo o que eu queria era sair daquele lugar: não tinha tempo para o exército brasileiro, embora aquela fosse a minha segunda oportunidade.
Fonte foto – Símbolo do Exército Brasileiro
O dia seguinte foi bastante exaustivo. Acordamos às cinco horas da manhã, ao som de uma clarineta estridente. Os recrutas antigos entraram nos nossos dormitórios berrando para que as ‘donzelas’, sim, nós; despertássemos. Foi uma correria danada: os novatos, desorientados, não sabiam para onde ir ou o que fazer.
– Arrumem suas camas, seus imprestáveis! – gritou um recruta antigo. – E, depois, donzelas, coloquem seus uniformes e se apresentem no pátio, com o seu pelotão. – Vamos, andem logo! Vocês têm cinco minutos para fazer isso! – vociferou. O dia foi longo e penoso. Primeiro, ficamos perfilados naquele sol causticante de verão durante todo o tempo que o sargento nos deu as instruções do dia e o que eles esperavam de nós. A lista me pareceu interminável!
As marchas foram longas e cansativas e ainda tivemos que cantar uma canção que o cabo pareceu ir inventando ao longo do caminho.
Fonte foto – Desciclopédia a enciclopédia livre.
No final do dia, pediram voluntários para lavar o carro do sargento, um Volkswagen já um pouco rodado, que estava na garagem, ao lado do pátio.
Cansados, ninguém se prontificou.
Veio o cabo – apontando na minha direção e dois outros recrutas, disse:
– Você, você e você, venham comigo! – nos conduzindo ao carro do sargento. Mostrou onde estavam o balde, a torneira, o pano e o sabão.
De lá, pudemos ouvir algumas risadas abafadas dos outros recrutas.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
“Puta que pariu!”, pensei. “Com todo esse cansaço, ainda vou ter que lavar
o carro do sargento?”
O cabo deu a volta e voltou para o pátio
– E vocês, os que se acham espertinhos, agora vão todos lavar os banheiros! – disse, com a autoridade que lhe concederam. – E é pra ficar bem lavado! – foi logo avisando.
Peguei o balde e fui enchê-lo de água.
O carro do sargento ficou brilhando de limpo. Estávamos terminando quando ele chegou.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – English: Modified 1963 Volkswagen Sedan (Fusca)
– Ah, é assim que eu gosto! Daqui pra frente vocês três ficarão encarregados de lavar o meu carro – disse o sargento, nos revelando o nosso futuro.
Naquele momento, apesar de receoso, aproveitei que o sargento estava contente com o nosso serviço, e perguntei se podia falar com ele.
– Passe amanhã no meu escritório, durante o almoço – disse ele. – O número da minha sala é 320.
Não podia crer que o meu pedido tinha sido aceito tão facilmente! “O sargento deveria realmente estar de bom-humor”, pensei. Sorte minha.
No outro dia, depois de passar pela mesma rotina da manhã: da clarineta; das filas; das marchas e das músicas do cabo, voltamos para o pátio. Quando nos dispensaram para o almoço, fui direto até o sargento.
Fonte vídeo YouTube – Toque de corneta do quartel
– Desculpe, posso entrar?
– pedi, humildemente, ao sargento.
– Entra, entra. – Qual a sua história?
– foi logo perguntando.
– Gostaria de conversar com o senhor sobre a minha situação aqui no exército.
– Sim…
– Sou arrimo de família e tenho que voltar para Goiânia. Minha família precisa da minha ajuda – falei com a voz quase que inaudível, e com um certo remorso pela mentira. Imaginei que o sargento já tinha ouvido aquelas súplicas diversas vezes e que não seria nada fácil convencê-lo.
Fonte foto – Arcevo pessoal do Valter Aleixo
– E o que você faz? – perguntou, como que a resposta determinaria a sua decisão.
– Sou professor de inglês – respondi, prendendo a respiração.
O sargento me olhou de baixo para cima. Imagino que deve ter pensado: “professor de inglês? Como pode um moleque dessa idade ser professor?” Não lhe tiraria a razão: eu tinha apenas dezenove anos.
Os segundo que se passaram pareceram eternos.
Fonte foto – Acervo pessoal de Valter Aleixo
De súbito, o sargento pergunta:
– How are you?
Aquilo para mim foi um enorme alívio: ele estava entrando num território do qual eu tinha total controle.
– I am well. Thank you. And how are you? – disse eu, sem hesitar.
Imagino que o sargento deve ter ficado surpreso com minha resposta, mas aventurou algo mais:
– And how long have you been teaching English? – ele me perguntou, com certa dificuldade. E, percebi, com esta frase um pouco mais longa, que ele tinha um sotaque pesado. Aquilo me deixou mais tranquilo ainda – e aproveitei para esnobar:
– I have been teaching English for almost two years now. I started when I was seventeen years old. I currently teach at a school in Goiânia by the name of Yázigi and I will soon be teaching at other schools as well.
Apesar da simplicidade da resposta, aquilo pareceu impressionar o sargento, que saiu-se com um “very good. Very good”, e acrescentou:
– Parece que você está falando a verdade – disse ele empurrando a cadeira com os pés, onde estava sentado, em direção aos seus arquivos.
Pegou a minha pasta e a examinou detalhadamente: viu que eu tinha sido recrutado pela segunda vez e também encontrou os documentos que indicavam que eu era arrimo de família.
– Vou te colocar como excesso de contingente – disse ele.
“Talvez aquela fosse uma maneira mais simples que o arrimo de família”, pensei. Na realidade, não me importava como sairia dali.
E, mostrando um documento, o sargento disse:
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Certificado de dispensa de incorporação
– Assine aqui – apontando uma linha com o dedo indicador.
Assinei o documento sabendo que aquele era o meu passaporte para a liberdade; para o mundo lá fora; para a vida que me esperava.
– Você pode ir pegar as suas roupas e deixar o uniforme do exército com o cabo Luis
– disse o sargento – entregando-me os documentos.
Minha alegria era tanta, que a sensação era de gritar e de chorar, mas acabei me contendo.
Peguei as minhas coisas e saí dali todo leve, feliz.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Quartel General do Exército, em Brasilia
No caminho para a rodoviária de Brasília, de onde eu partiria para Goiânia, fiquei pensando em tudo o que havia ocorrido comigo nos últimos três dias: tinha passado por uma experiência que, embora muito breve, me marcaria para o resto de minha vida.
Na rodoviária, sentei-me num banco vazio e, naquele momento, sozinho, exausto e aliviado por ter sido dispensado do exército brasileiro, abaixei a cabeça, quase entre as pernas… e, finalmente, chorei.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
A sensação que senti foi uma mistura de alívio e traição: havia mentido para a minha Pátria; tinha colocado os meus interesses pessoais acima do patriotismo; do dever cívico; acima de tudo.
Pude, então, compreender claramente o que o coronel nos havia dito no primeiro dia: “esta é uma oportunidade única… “, mas já era tarde demais! Aquelas palavras iriam martelar no meu cérebro para sempre.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
A ruidosa rajada de vento com fumaça do ônibus, entrando no box da rodoviária, me trouxe de volta para o mundo.
Entrei no ônibus, entreguei a minha passagem para o motorista e fui sentar-me no último assento.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Por Valter Aleixo