Por Kênia Aquino Garcia.
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Eu Kênia Aquino Garcia, não consigo lembrar exatamente em que momento começou minha paixão pelo céu. Mas lembro de morar a infância inteira em um lugar alto que me permitia ver o pôr do sol no reflexo do morro das antenas, no bairro Partenon em Porto Alegre. Essa foi sem dúvidas uma das lembranças mais marcantes do início desse amor.
Nessa época da vida era comum eu me flagrar olhando pro céu e imaginando que haviam formas, cores e coisas totalmente diferentes lá em cima. E não somente isso, eu gostava de imaginar que logo atrás do morro das antenas já era a cidade de São Paulo.
Fonte foto – https://quilomboaereo.com.br/2021/02/02/loren-ipsum-2/.
Fui crescendo e entendendo que meu maior pesadelo era acordar aos 50 anos e perceber que passei a vida toda trabalhando no mercado do bairro e não conheci nada além da minha cidade. Próximo dos meus 16 anos minha mãe teve a oportunidade de nos levar pra viajar de avião pela primeira vez e aí lembro perfeitamente da sensação de frio na barriga e do turbilhão de informações e sentimentos que seguiram depois daquele dia. Descobri que havia uma visão ainda mais bonita das nuvens, e que olhar elas de cima pra baixo tinha uma espécie de magia.
Naquele dia, com toda maturidade errante dos meus 16 anos ficou decidido que eu ia trabalhar acima das nuvens e vivenciar todos os dias aquela magia. Não tive nenhuma dúvida de que isso ia acontecer, a dúvida era: Como fazer isso?
Para uma menina negra da periferia, nunca havia sido uma possibilidade ser comissária de voo, eu nem sabia direito o que era voo. Sabia que existiam aviões, logicamente, mas não era algo que eu e minha família tínhamos em mente quando pensávamos em possibilidades de profissionalização. Não havia nenhum familiar piloto, não morava nenhuma aeromoça na nossa rua.
Fonte foto – https://viracoposaeroparking.com.br/tem-medo-de-viajar-de-aviao-entenda-porque-voar-e-seguro/.
Naquele mesmo ano eu comecei a trabalhar, e a sonhar com tudo o que tinha planejado pra minha vida profissional. Levei alguns anos pra conseguir enfim pagar o curso, e quando comecei o curso muitos não acreditavam em mim, alguns dos meus familiares duvidavam que eu conseguiria de fato voar.
Só que, quando se tem propósito e fé as montanhas se movem mesmo. Comigo, aos poucos e com muitas mãos ajudando, as montanhas foram se movendo. Nessa época eu fazia o que dava pra fazer, criei rifa, fiz viagem de 18 horas de ônibus, dormi no sofá dos colegas, dos amigos de familiares, um bolo pra vender ali ou aqui, enfim tudo era válido.
Precisei de quatro tentativas de processos seletivos sendo a maioria fora de minha cidade natal até enfim conseguir minha sonhada vaga para trabalhar como comissária de voo. E em 2008 decolei de vez e fui viver aquela que seria a melhor fase da minha vida. Seria o paraíso “viver” as nuvens de cima para baixo diariamente, se não fosse o racismo.
“Primeira turma de comissários de voo exclusivamente para negros do Brasil”
Precisei Olhar nos olhos do racismo todos os dias a bordo, entendendo que a estrutura racista queria que todas as mulheres e homens pretos passassem os mesmos maus bocados que eu passei para chegar ali. E essa foi só uma das descobertas que foi fazendo eu perder o brilho, perder a vontade e perder a alegria de voar.
Depois de muitos anos apanhando do racismo eu decidi que não mais seria “Aeropreta”. Estava cansada de conviver com as dores da discriminação velada, os horrores do racismo descarado e acabei por me afastar do trabalho alguns meses por aconselhamento do meu terapeuta. Quando voltei estava pronta para pedir as contas. Mas a vida ela é uma montanha russa e quando chegou a hora de eu desistir de tudo e pousar de vez, encontrei outras comissárias negras que vivenciaram a mesma coisa que eu: Racismo a bordo todos os santos dias.
Nossa primeira Pilota Preta, Laiara Amorim e Kênia Aquino Garcia.
Era uma doença silenciosa e nós não éramos as pessoas doentes, porém acabávamos adoecidos por viver aquilo.
Quando nos encontramos não sabíamos ao certo o que seria de nosso encontro, porém não demorou muito pra entendermos o motivo de termos nossos caminhos cruzados. O Quilombo aéreo chegou de repente e veio para trazer luz a um problema que a aviação fingia que não existia. Éramos enfim o primeiro coletivo de comissárias, comissários e pilotos negros da aviação civil brasileira e não estávamos mais nos sentindo sozinhos nesse ambiente.
Desde 2018 estamos trabalhando arduamente para fazer a diferença em nossa área e vamos seguir com nossos projetos e nosso propósito: trazer equidade racial para o céu do Brasil.
“Primeira turma de comissários de voo exclusivamente para negros do Brasil”
O primeiro edital que o coletivo Quilombo Aéreo foi aprovado foi através do Fundo Baobá, um edital de lideranças femininas que apoiou principalmente a Laiara Amorim nossa primeira Pilota Preta do Quilombo aéreo que é também uma das pessoas responsáveis por me fazer seguir voando naquele fatídico ano em que eu achei que teria perdido a batalha pro Racismo.
De lá pra cá muitas coisas boas aconteceram, inclusive nossa aprovação no segundo edital do Quilombo Aéreo! Dessa vez vinculado a plataforma da Benfeitoria, que nos permitiu criar o projeto PRETOS QUE VOAM. Esse projeto é atualmente o menino dos meus olhos e ele basicamente consiste em um programa de bolsas de estudos para pretos periféricos de baixa renda. Ele foi nesse último ano nosso maior foco de trabalho e nos permitiu vivenciar coisas inimagináveis quando começamos.
Jessica Carneiro, foi uma das alunas selecionada no primeiro edital.
Formamos dia 20 de novembro de 2021 a primeira turma de comissários de voo totalmente negra da aviação civil brasileira, e a festa foi realizada na sede de uma sociedade chamada Floresta Aurora, que foi fundada ainda antes do fim da escravização, por pessoas escravizadas. Naquela sociedade onde nossos alunos celebraram a conclusão do curso, os pretos costumavam se reunir para comprarem as alforrias uns dos outros.
Não tem coisa mais simbólica do que dar asas e liberdade aos nossos do mesmo jeito que nossos ancestrais faziam. Nossos alunos desse projeto são pessoas diversas, temos mães solo, pessoas LGBTQIA+, temos a primeira comissária de voo quilombola, é a história sendo feita e a dor que nos foi apresentada através do racismo sendo transformada em amor, cuidado e carinho.
“Primeira turma de comissários de voo exclusivamente para negros do Brasil”
Depois de nossa primeira formatura continuamos trabalhando, e estivemos com nossa segunda vaquinha para dar prosseguimento ao trabalho do Quilombo Aéreo. Arrecadamos o valor necessário para agora em 2022 abrirmos nossa própria instituição de ensino, e é assim senhoras e senhores que vamos finalmente mudar a cor do céu.
Se eu pudesse hoje encontrar aquela menina lá do Partenon que tinha medo de acordar aos 50 anos com uma rotina enfadonha e sem ter descoberto o que tinha atrás do morro das antenas eu diria poucas coisas, dentre elas eu diria que ela poderia ficar tranquila porque ela já nasceu com as asas abertas. É só uma questão de tempo pra decolagem acontecer.
E o Quilombo aéreo chegou pra mostrar a todas as meninas e meninos que estão na periferia que tem muito mais coisas acima das nuvens do que eles podem sonhar e que o céu NÃO É um limite.
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Por Kênia Aquino Garcia.
Orgulho de dividir essa caminhada com você
Sua história é maravilhosa. Sinto-me super feliz.
Belíssima história. Parabéns Kênia por tamanha perseverança.