Por: Ariel Seleme.
Telefone chamando no meio da madrugada. Só pode ser problema.
– Ariel? o Ariosto morreu.
– o professor morreu? Quando foi?
– no início da noite, coração.
– Quando será o enterro?
– hoje as 5 horas da tarde.
Na manhã seguinte embarquei no primeiro voo para Belo Horizonte. Previsão de chegada 3 da tarde. Calculei em 1 hora do aeroporto ao cemitério. Chegaria em tempo.
Voo tumultuado, temporal e raios. Nas poltronas do meu lado dois policias levavam um rapaz algemado. Na frente dois padres e uma senhora vestida de branco, enfermeira? Talvez. Os padres e a senhora rezavam. Imaginei que os três tinham força com o criador. Fiquei mais tranquilo…. o avião não iria cair, não desta vez.
Se o voo foi terrível a chega foi pior. A chuva continuava forte e o céu escuro como a noite. Mais de uma hora rodando no meio da tempestade sem autorização de pouso. De repente um baque forte e muitos gritos na cabine. Sem nenhum aviso o avião “pousou”.
Taxi! Taxi!! Com chuva qualquer cidade é igual. Nada de taxi.
Aluguei um carro e disparei para o cemitério. No relógio 4:30. Vou chegar atrasado. Não alcanço o enterro. Merda! Esforço em vão. A chuva antecipou a noite e já estava bem escuro quando cheguei no cemitério.
A placa em acrílico branco indicava: informações. E lá pergunte sobro o enterro do Professor Ariosto.
– Capela 4. É a última, próxima ao muro. Ainda não foi enterrado, a família aguarda estiar. Talvez nem tenha enterro hoje.
– Obrigado.
Estacionei em frente a capela. Entrei para encontrar o caixão em um salão vazio. Eu, o morto e ninguém mais. Estranho, o professor tinha tantos amigos – pensei.
Estava escuro, me aproximei do caixão, O defunto carregava uma tela cobrindo o rosto. Percebia-se cicatrizes e cortes na face. Estranho…. a morte foi por complicações cardíacas.
Percebo uma pessoa ao meu lado.
– O senhor conhecia o morto?
– Muito! Foi meu mestre.
– Então o senhor vai ter que me acompanhar.
– Acompanhar? Pra onde?
– Delegacia?
Como todo bom brasileiro, pensei logo: é golpe, assalto ou sequestro.
– Acompanhar uma ova, sai fora seu pilantra que eu vou chamar a polícia.
– Eu sou a polícia e o senhor vai comigo para a delegacia.
– Vai tomar no meio do…. delegacia que nada seu safado..
Tentei correr mas fui agarrado. Mais dois indivíduos apareceram. Tá preso!
Dei uma pernada, levei um soco. Socorro!! Estou sendo assaltado!!
– Parado ou eu atiro! Alguém apontava uma arma na minha cara.
– Tenho pouco dinheiro, mas podem levar tudo.
– Não estamos te assaltando seu palhaço, você tá sendo preso por conhecer o traficante Trindade.
Com a mão direita dei um soco na pessoa com a arma. Um tiro foi dado para o alto.
– Para ou morre!
Estava algemada.
– Ariel, é você?
– Beatriz, sou eu! A viúva não entendia nada e nem eu.
Na verdade o velório do Professor Ariosto ocorria na capela ao lado, a número 5.
Na capela 4 era o “velório” do traficante Trindade. Bandido procurado em 7 estados.
A bandidagem não apareceu porque sabia que a polícia estava de campana. Quando falei que o defunto era meu mestre, prisão na hora.
Desfeito o mal entendido, fui para o velório certo.
Professor Ariosto deitado no caixão, sorria.
Capela cheia, mas devido à forte chuva a luz continuava fraca. Era difícil reconhecer as pessoas neste “lusco fusco”.
– Ariel?
– Coronel Setembrio?
– Rapaz que inferno de chuva. Deus está chorando com a morte do Professor.
– Certamente.
A viúva circulava pelo velório. A filha, Sorajane, sentada, fazia palavras cruzadas e fumava cigarrilhas Presidente.
Beatriz veio ao meu encontro.
– Ariel, você sabia que Ariosto tinha terrenos em Parati?
– Obviamente. Eu ajudei fechar o negócio. Você não sabia?
– Ariosto era um mar de segredos. Esta noite mesmo gastei horas para abrir o cofre da sala. Usei até marreta, mas não foi em vão. No cofre tinha dólares e ouro.
Pensei comigo: triste Ariosto, no dia de sua morte a esposa passa a noite lutando para abrir um cofre.
– Aonde estão as escrituras Ariel?
– Escrituras?
– Dos terrenos de Parati?
– Eu não sei de escrituras.
– Quero vender tudo.
Beatriz, irada, levantava as duas mãos para cima e gritava: – quero vender tudo!!!
Antes de continuar a “conversa” com a viúva, uma confusão irrompeu no fundo da capela. Vi o Coronel Setembrino separando tapas e bofetões.
– Vadia, vagabunda!!!
– Some da minha vida seu merda!
– Agora que você tá com a grana do velho quer que eu suma.. quero minha parte!
Era a filha de Ariosto, Sorajane, “desentendendo-se” com o namorado.
Tapas, arranhões, mordidas e uma garrafada na testa do rapaz.
Já amanhecia quando a polícia apareceu. O namorado levou 10 pontos na testa e prestou queixa. A polícia apareceu, colheu depoimentos e partiu.
7 da manhã, a chuva parou. Ia começar o enterro. Nesta hora, algo surpreendente e inusitado aconteceu. Antes dos amigos levantarem o caixão a viúva pediu a palavra:
– Sei que todos aqui são amigos do meu falecido marido o Professor Ariosto. Sinto vergonha do que vou falar agora, mas este enterro custou 8 mil reais e eu preciso do apoio de vocês para pagar. Por favor, vamos fazer uma vaquinha. Qualquer quantia ajuda. Qualquer valor é bem-vindo. Não é para, é para o Professor.
Constrangido dei 100 reais. Era o que tinha no bolso. Coronel Setembrino deu 300.
Rapidamente, mais de 10 mil reais foram recolhidos na capela. A viúva, sem cerimônia, contou o dinheiro e proclamou: – o funeral está pago, podemos seguir com o enterro.
Descia o caixão. Quis falar.
– morre hoje um mestre. Alguém que identificou raiz do atraso, do subdesenvolvimento do Brasil e apontou solução. Um amigo de tantos. Como Van Gogh, ele não viveu pra ver a dimensão de sua obra. Ariosto não parte, fica. Fica em nossos corações, em nossas mentes, em nossa consciência de lutar por algo melhor, mais justo, mais democrático. Ariosto sempre dizia que o Brasil não é um território, ou uma nação ou um governo, é sim um conjunto de pessoas que podem muito mais do que têm. Vai em paz meu mestre.
Voltou a chover. Todos saíram às pressas.
Saindo escutei Beatriz me chamar.
– Ariel, não se esqueça das escrituras dos terrenos de Parati.
– Beatriz, vai a merda. Você é o ser humano mais hediondo que conheci. Seu verme.
Coitado do Ariosto por ter convivido com um excremento humano como você. Gostaria de estar te enterrando no lugar do professor.
– Ariel, você é um maldito, canalha, quero meus terrenos… vou vender tudo…
Voltei no próximo voo pro Rio. O avião levantou voo em meio a nuvens de chuva. Passada as nuvens o sol brilhava, tornando ainda mais branco o tapete de algodão.
Olhando o horizonte, pensei na construção da vida. Dias, meses, anos e depois o fim.
A vida é o que acontece com a gente quando estamos ocupados fazendo outras coisas.
O mestre Ariosto permanece vivo em minha consciência.