Luciana Dornelles Ramos
Aos quatro anos, eu estava brincando de Barbie com duas amigas na casa de uma delas, quando o seu avô entrou no quarto e falou “o que essa negrinha está fazendo em cima da cama? Se quer brincar aqui em casa tem que brincar no chão”. Eu sem entender nada, sentei no chão, e continuei brincando, me perguntando por que elas podiam continuar brincando na cama e eu não. Ao chegar em casa perguntei para a minha mãe, “por que?”, e a resposta dela mudou minha vida.
Fonte foto – O pai Gilberto Ramos Sarão, Luciana e sua mãe, Neiva Dornelles Ramos Arquivo pessoal de Luciana Dornelles Ramos
Sim, aos quatro anos minha mãe teve que me explicar o que era o racismo. Aos 4 anos ela teve que me mostrar um lado tão feio do ser humano, que nenhuma criança deveria conhecer. Mas aos quatro anos eu me entendi como negra, e jurei para a minha mãe que não deixaria nunca mais alguém me diminuir por isso.
Fonte foto – Sra. Neiva Dornelles Ramos – Arquivo pessoal de Luciana D. Ramos
Crescer negro em uma sociedade racista não é fácil. São tantas as ofensas e humilhações diárias, que acabamos encontrando subterfúgios para seguir em frente. Alguns se tornam agressivos, revidando sempre os ataques (que algumas pessoas dizem não existir), alguns se alienam, fazem que não vêem, afinal machuca tanto… que a pessoa prefere não sentir, ou dizer não se importar. Alguns se embranquecem, negam ser negros (mais do que imaginamos), alisam os cabelos e raspam a cabeça como uma fuga daquilo que escutavam todos os dias.
Fonte foto – Arquivo pessoal de Luciana Dornelles Ramos
“Cabelo ruim”, “prende esse bombril”, “cabelo sujo”, “por que não alisa?”, “por que não alisa?… “por que não alisa?”. E assim, a gente começa a se invisibilizar, se embranquecer, a gente não quer chamar atenção… não quer ser diferente. A gente se apaga. Eu tenho a sorte de ter uma família incrível, que sempre me fez me sentir especial, me incentivou a estudar (o que é a minha paixão, amo estudar, amo aprender), cursei Ed. Física na UFRGS, e foi a melhor conquista da minha vida, me abriu portas para o mundo que ainda quero conquistar. Hoje sou professora do Estado.
Fonte foto – Família – Rafael Dornelles Ramos, Dr. Fabiano Dornelles Ramos , Prof. Luciana Dornelles Ramos , Sra. Neiva Dornelles Ramos, Sr. Gilberto Ramos Sarão – Arquivo pessoal de Luciana Dornelles Ramos
Trabalho com as adversidades do sucateamento da nossa educação, tentando trazer para nossas crianças um pouco do mundo que eu conheci. Mostrando as belezas da nossa diversidade, ensinando o respeito através do esporte e das nossas relações. Pois acredito que eles são a chave para o nosso futuro. Para uma sociedade mais humana e menos preconceituosa.
Fonte foto – Arquivo pessoal de Luciana Dornelles Ramos
Hoje eu entendo a diferença entre nascer negro e tornar-se negro. Hoje eu entendo minhas feições, eu amo meu cabelo, amo minha cor e quero cada dia mais conhecer a cultura negra que nos foi roubada. Temos que parar de nos esconder, nos empoderar, ocupar os espaços que ainda nos são negados. Resistir.
Nós somos negros, somos lindos, somos guerreiros e capazes de chegar onde a gente quiser. Se amar, e se entender é apenas um primeiro passo para um mundo novo que se abre para nós.
Fonte foto – Luciana Dornelles Ramos – Arquivo pessoal
Entrevista
VB – Onde você nasceu?
LD – Nasci em Porto Alegre, Rio Grande do Sul
VB – Qual a sua formação profissional?
LD – Sou formada em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Atividade física adaptada e saúde e Mestranda em Educação pelo PPGEdu.
VB – Fale sobre os seus projetos?
LD – Quando entrei no Estado em 2015 como professora vi que a autoestima dos alunos negros era muito baixa, meninas negras não soltavam os cabelos, os meninos raspavam ou usavam bonés. Quando eu falava sobre, eles me diziam que odiavam seus cabelos. Me vi neles, a vida toda aluna de escola pública, voltei como professora e vi que ela ainda não havia mudado para o aluno negro. Não nos víamos nos livros didáticos, nos professores, não aprendíamos sobre os nossos heróis. Aquilo me incomodou, vi que precisava fazer alguma coisa.
Fonte foto – Arquivo pessoal de Luciana Dornelles Ramos
Criei um projeto chamado “Empoderadas IG: o poder do crespo e o empoderamento”, que é um grupo de estudos onde estudamos história e cultura negra, falamos sobre racismo, representatividade, respeito a diversidade e principalmente sobre a necessidade de uma educação antirracista nas escolas que mesmo com uma lei (10639/03) que obriga a inserir no ensino básico o ensino da cultura e história africana e afro-brasileira, segue com seu currículo eurocentrado, ocultando a história dos povos negros e originários deste país. Hoje visitamos outras escolas públicas das periferias de Porto Alegre compartilhando um pouco do que aprendemos juntos, levando empoderamento a essas crianças através da educação antirracista.
Fonte foto – Arquivo pessoal de Luciana Dornelles Ramos
Kenia Aquino é minha parceira na produtora, Malê Afroproduções, com ela produzimos cultura preta aqui em Porto Alegre, e fazemos eventos de protagonismo Preto fortalecendo o Black Money. E tenho um projeto com Kauê Kamaú um colega professor de educação Física que se chama Afrofit, onde visamos a saúde da população negra e oferecemos acompanhamento nas atividades físicas e com nutri por um valor acessível para o povo Preto!
Fonte foto – Arquivo pessoal de Luciana Dornelles Ramos
VB – Qual a importância das cotas no Brasil para você?
LD – As cotas são necessárias em um país que historicamente e institucionalmente tem o racismo enraizado nas suas escolas. Desde o período pós abolição, existiram ações e leis que impediram o acesso do povo negro a educação. Por exemplo uma lei em que somente quem fosse proprietário de terras poderia ter seus filhos nas escolas. Sendo que após a abolição não houve nenhuma política de reparação para o povo negro que veio para o Brasil escravizado e deu seu sangue trabalhando nas terras daqui, diferente do que aconteceu com os imigrantes europeus que chegaram aqui e ganharam terras e materiais para que pudessem começar uma vida, os negros não tiveram nada disso e consequentemente sem terras não tinham acesso as escolas.
Fonte foto Wikipédia, a enciclopédia livre.
A educação só teve acesso universal com a constituição de 88, onde muitas crianças negras já trabalhavam para ajudar suas famílias desde muito pequenos, para seu sustento, para ter o pão de cada dia. Até hoje as crianças negras não se veem nas escolas, são maltratadas por colegas e professores, não aprendem sobre a sua cultura, sua história e quando ouvem falar sobre o povo negro é somente sobre escravidão. Enquanto nosso país tiver o racismo institucionalizado nas suas escolas, as cotas serão o mínimo que podemos fazer como reparação de tudo isso.
VB – Qual a sua opinião a respeito da participação do negro na guerra dos Farrapos?
LD – Para mim os negros que participaram da revolta farroupilha foram os únicos que lutaram por um motivo justo, pela liberdade. Entraram na guerra pela promessa da alforria, e quando os ditos heróis farroupilhas viram que iam perder, e que negociando com o império perceberam que era “impossível” cumprir a liberdade que prometeram aos lanceiros negros, os desarmaram e entregaram para serem dizimados naquele episódio vergonhoso em Porongos.
Fonte foto – https://www.facebook.com/Guerra-dos-Farrapos-313673545476055/
VB – Lanceiros Negros o massacre de Porongos no penúltimo confronto da Revolução de Farroupilha, na sua percepção ouve traição?
LD – Uma traição vergonhosa, que os tradicionalistas tentam jogar para baixo do tapete para não mancharem a figura de seus heróis. Entregar guerreiros que lutaram ao lado deles, sem nem mesmo dar a chance de que se defendessem, é uma vergonha que não me faz ter nenhum orgulho pela revolta farroupilha.
Fonte – Wikipédia, a enciclopédia livre – Retrato de um Lanceiro Negro, óleo de Juan Manuel Blanes
VB – Qual o Brasil ideal para você? Ele existe?
LD – O Brasil ideal pra mim é um Brasil que reconheça a importância do povo negro na sua história, que valorize e respeite os povos originários (indígenas), que não quebre nossas crianças nas escolas, que ensine que elas descendem de reis e rainhas, e que tiveram ancestrais tão fortes que sobreviveram ao maior holocausto que o mundo já viu, a escravidão. Um país que permita que essas crianças se amem e que abram portas ao invés de negar oportunidades. Um país que respeite a natureza, nossa fauna, nossa flora, tão ricas e tão atacadas sem nenhuma preservação. Infelizmente esse país não existe, mas luto todos os dias para que as próximas gerações possam conhecê-lo, assim como meus ancestrais deram as vidas e o sangue para que eu pudesse estar aqui, livre, lutando pelas próximas gerações.
VB – Fale sobre sua família.
LD – Minha família é minha base, meu porto seguro. Tudo que sou devo a eles. Me ensinaram que estudar é nossa maior arma, me fizeram apaixonada pela cultura, pela leitura, pelas artes. Me enchem de amor, vibram com as minhas vitórias, choram comigo minhas derrotas e mostram que estarão sempre ali para que eu possa me reerguer e seguir em frente.
Fonte foto – Família Dornelles e Família Ramos – Fabiano Dornelles Ramos, Ruth Vieira Dornelles, Francine Hergemöller, Iris Dornelles Alves, Amanda Eccel Dornelles, Neiva Dornelles Ramos, Elisabeth Eccel Dornelles, Leonardo Garcia Forte, Gilberto Ramos Sarão, Alves Otacilio, Bárbara Ramos, Maria Inajara Silveira, Solange Ramos , Simone M. Ramos, Rafael Ramos, Mariza Ramos, e a priminha Marina Dornelles Forte – Arquivo pessoal da família
Com eles aprendi a fazer pelo coletivo, que nossas conquistas tem um gosto especial quando levamos os nossos junto com a gente. Que sempre vale a pena estender a mão e mudar o dia, a vida, ou o mundo de alguém. Tenho a mãe mais amorosa do mundo que me acompanha a cada passo faltam até palavras pra descreve-la, meu pai sempre presente vibrando comigo minhas conquistas, me cuidando, me dando carinho, e meus 2 irmãos que são meus melhores amigos, meus exemplos, meus companheiros. Sou Ramos e sou Dornelles, família de professores, de guerreiros, de pessoas que lutam por um mundo melhor!
Fonte foto – Professores Dornelles – Arquivo pessoal Luciana Dornelles Ramos
VB – Cite 3 personagens importantes mundialmente.
LD – Acredito que Ângela Davis é uma grande referência. Pantera Negra, mulher que luta até hoje pelo empoderamento negro, pelos nossos direitos e pela valorização dos nossos. Nelson Mandela, nos deixou ensinamentos maravilhosos, ressaltou que a educação é a nossa maior arma, levou nossa luta para o mundo. Luiza Mahin foi uma guerreira Malê, que aqui no Brasil lutou pela liberdade do povo negro, libertou muitos escravizados, mostrou o poder da mulher negra que se ergueu e teve sucesso mesmo em tempos macabros como os da escravidão.
Fonte foto – Luiza Mahi https://www.facebook.com/calmuffiear/photos/a.662815503823531/662816633823418/?type=1&theater
VB – Cite 3 negros que fizeram ou fazem a diferença na sua vida.
LD – Bob Marley e sua família fizeram toda a diferença na minha infância, pela questão da representatividade, pelas letras das músicas extremamente políticas, me fizeram sentir um pertencimento muito grande. Ana Maria Gonçalves é uma mulher negra, escritora maravilhosa que escreveu o livro “Um defeito de cor” que conta a história de uma menina africana que foi sequestrada e trazida para o Brasil escravizada. A humanidade com que ela tratou os personagens negros, mostrou um outro Brasil colônia cuja história nunca nos foi contada… ler esse livro pra mim foi um reencontro ancestral, foi reencontrar aquela parte na nossa árvore genealógica que se oculta na escravidão. Foi ler tendo a impressão de que minha tataravó estava me contando uma história, foi incrível. (Já fica a dica de livro) E não posso deixar de falar do meu avô, Armando Dornelles, que sempre nos mostrou o quanto era importante estudar e ser independente, que criou uma família incrível, ele com quem eu queria muito poder dividir minhas conquistas, contar minhas histórias. Ele que mesmo já tendo partido segue na minha vida e na minha lembrança todos os dias. Meu avô, meu herói!
Fonte foto – Avô Sr. Armando Dornelles – Arquivo pessoal Luciana Dornelles Ramos
VB – Cite um lugar no mundo ou no Brasil onde você gostaria visitar ou morar.
LD – Em Wakanda! Hahahahaha Acho que não sairia do Brasil, morar no Rio Grande do Sul é bem difícil. É um estado bem racista, mas aqui encontrei companheiros de luta incríveis. Se eu saísse daqui gostaria de ir para a Bahia, acredito que lá é o berço da cultura negra no Brasil, e que lá eu encontraria muito do que busco aqui.
VB – Você não gostaria morar nos Estados Unidos da América?
LD – Eu sinto um pertencimento muito grande pelo Brasil, gosto muito de viajar, mas sinto muito prazer em voltar pra casa. Não sei se moraria em algum lugar fora daqui.
Por Sergio Lima