Edmur Alves *** Adinaldo Sousa
Prezado amigo, li com muita atenção a tua poesia.
Confesso que gostei. Não me surpreendi porque já havia identificado tuas habilidades poéticas em outras postagens. Elas nasceram nos tempos em que a revolução se fazia nas ruas, nas esquinas, dentro dos bares tomando um trago de cachaça ou um copo de cerveja, e não no simples clicar de um botão de celular, como miseravelmente acontece hoje.
A revolta tinha cor, e tinha vontade de transformar a sociedade em uma organização social mais justa. A poesia tem a mágica de condensar em uma única estrofe vários séculos de opressão. Cada palavra nasce de um grito rasgado e enfurecido que se abre como uma janela que se escancara para um mundo surdo e cego, cujo grito ressoa em vários tons, como um eco num desfiladeiro. Como nestes teus primeiros versos:
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Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Escravos domésticos no Brasil em 1820, por Jean-Baptiste Debret
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Tantas vidas num segundo se passaram
Cinco séculos de segundos perpassaram
O que falar das alegrias nunca ocorridas no amanhecer
E das tristezas profundas e constantes no entardecer
Quantos choros escondidos, reprimidos, no anoitecer”.
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A dor que lateja, transpassa os tempos e se fixa como uma cicatriz na alma, que permanece doendo como uma dor agregada ao sentimento de raiva, a se refletir num desejo de reproduzir o mesmo calvário a quem o provocou. A vontade de fazer doer no lombo daqueles que profanaram a humanidade do povo que veio espremido dentro dos navios negreiros. A igreja tão solene em enaltecer. a humanidade, foi cúmplice da barbaridade. Assim assimilei estes teus versos:
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Navio negreiro por Rugendas
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“Ah! Que bom seria se os tempos, no tempo, regredissem
E os católicos, de então, no pelourinho sucumbissem
À chibatadas em constas brancas e resistissem
Com seus terços cristãos nas trêmulas mãos
E no segundo dos segundos, existissem”
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Os cristãos resilientes em sua fé, não pediam clemência para os que eles supliciavam. O Altruísmo que propagavam por trás de uma cruz de um Deus martirizado, não era generoso para com os escravos. Mesmo pregado em seu lenho sagrado esse Deus não tinha compaixão. Nunca se fez conexão com a barbárie que se cometeu contra esse Deus fixado à sua cruz, com a barbárie que cometia contra os oriundos da África. Nos países das Antilhas, onde a colonização francesa se fez também impiedosa, primeiro chegaram com a cruz, e depois com a guilhotina. Os Deuses jamais foram clementes, há neles um histórico de atrocidades que me faz profano. Quando vejo um crucifixo fixado numa parede, ou dentro de um igreja, ou mesmo atada à uma corrente no pescoço de quem se diz cristão, não me reconheço como um deles. Segue seus versos onde percebi esse sentimento de desconforto diante dos que se dizem piedosos.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Praça Anchieta e Igreja de São Francisco ao fundo
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Será que resistidos estariam?
Será que seus terços rezariam?
Será que seus santos os poupariam?
Da morte iminente e vivos estariam?
Três séculos de absoluta covardia
O dorso branco sabia que não resistiria um único dia
E por isso em nome de Deus, às costas negras, batia, batia e batia
Prazeirosamente, intempestivamente e desumanizadamente batia e batia”
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As lembranças que continuam a doer como no quadro de Drummond que doía na parede, estarão presentes como um passado que nunca passa, perpetua-se como uma estigma que se faz inteira e não se estilhaça com o tempo. Não existe borracha corretiva que apague essa nódoa na história. É como o retrato que amarela com o passar do tempo, mas nunca perde a imagem que deixou congelada. O branco segue impoluto como alguém que não tem responsabilidade com o que se passou naqueles tempos de covardia, mas continua recompondo a história com suas chibatas preconceituosas e racistas. Como segue nos teus versos.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Uma família de brasileiros brancos e suas escravas domésticas, Império do Brasil 1860.
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“Quizera que este maltrato findasse, enquanto retrato
Todavia bom seria se fosse sonho ou mera fantasia
No entanto e muito além d’uma interminável fotografia
Que martiriza incessantemente; quão infindável agonia!
No transcorrer dos tempos a idéia foi consubstanciada
Ao branco tudo: escola emprego morada, ao negro o nada
E no nada do absolutamente nada, o domínio se arrasta
O pelourinho na Bahia neste país se alastra.. e como alastra
O chicote já bate e bate, também prende e prende, agora mata e mata”
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O negro continua massacrado por conta da escravidão. A história pesou sobre ele como um enorme fardo. A colonização portuguesa produziu uma elite nociva e covarde que ainda o faz escravo. A produtora de cinema de Spike Lee chama-se “40 acres and a Mule Filmworks” , (40 acres e uma mula). Porque nos EUA os negros libertos tiveram direitos a um pedaço de terra para trabalhar e continuar vivendo. Mas aqui no Brasil ele foram atirados às ruas sem trabalho, sem direito algum e analfabetos que terminaram inchando as favelas. Como preconiza sua poesia|:
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – A favela da Rocinha no Rio de Janeiro .
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“Tantos são os negros e no entanto nada são para a mudança dos fatos
Continuam sem direitos, tampouco respeito, quiçá afagos
Um cotidiano repleto de constantes maus tratos, amargurados, inviabilizados
Peçam socorro, pra quem? Chamem a polícia, de quem?
Dos brancos que se omitem e por isso a polícia mata negros em cada quadrado?”
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Os negros que ascenderam à classe média, muitos querem distância do passado dos seus ancestrais. Desejam que o passado fique restrito à história. Como se esse alheamento os fizessem impunes. Mas a mão assassina do racismo também os atingem com força. Assim como todos os povos perseguidos da humanidade, a luta pela libertação tem que passar pela revolta e pelo reconhecimento que eles têm direitos, pelos quais sempre vale lutar. Assim como Rosa Parks, que involuntariamente deu força ao movimento negro americano, a luta sempre tem início num momento de opressão extrema. Eu e você perguntamos: teremos nós a nossa Rosa Parks?
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Escravos (incluindo seus filhos) reunidos em uma fazenda de café no Brasil, c. 1885 ( Marc Ferrez).
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“Triste da classe média negra totalmente cega não se vê afetada
Pior por não ser nenhum dos seus, aplaude no mais absurdo descalabro
Se ilude no absolutismo pseudo escudo de classe diferenciada
É inebriada não se vê também vítima do mesmo descompasso.
Acorde para que a derradeira dor não lhe faça acordar, tardiamente
Triste, muito triste, quando um filho teu tarde não chegar, costumeiramente
A revolta no teu peito não perdoará o teu engano, nunca infelizmente.
Portanto, negra classe média, nenhuma felicidade pode ser vivida tardiamente”.
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O martírio do povo africano nos legou uma cultura rica que se faz presente no cotidiano do brasileiro. Uma cultura carregada de ritmos e cores. Risadas sonoras e alegrias que se estampam nas faces. Lembro-me dos negros da minha infância. Eles eram servis e atenciosos e sempre dizendo “Sim sinhor, sim sinhor”. Muitos não ousavam erguer os olhos e nunca nos olhavam de frente. Quase sempre de cabeças baixas caminhavam pelas calçadas em estado de prostração. Os 350 anos de escravidão ainda lhes pesavam nas costas. A primeira vez que fui à Bahia em 1975, quando o Heládio morava lá, tive um choque cultural. Foi nas terras baianas que percebi uma negritude orgulhosa de sua raça, às vezes até arrogante, a me olhar de cabeça erguida, quase desafiadoramente. Havia uma força racial que colocava o negro numa postura altiva frente ao branco. E isso eu já tinha presenciado nos romances de Jorge Amado. Ele soube compreender o negro como ser criativo e rico em sua humanidade roubada. Como vaticina a última estrofe do poema:
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Largo do Pelourinho na Bahia
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“Clamo a beleza do sorriso negro tanto combatido e desvalido
Quão bonito o gargalhar d’uma alegria negra, ainda que resistido
Salve o clarear do amanhecer sem esquecer os ancestrais, razão de ser
Os que anunciam às nossas alegrias, às nossas conquistas, no resplandecer”
Fonte foto – Arquivo particular do Adinaldo Sousa
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“E assim, meu amigo, termino meus comentários sobre a tua poesia. Ela traçou o roteiro para o meu comentário. Ela foi a guia-mestra que me introduziu nesse triste pedaço da nossa história.
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“Um abraço, você é um poeta absoluto.
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Fonte – Poesia de Adinaldo de Souza e Comentário de Edmur Alves
Poesia e comentários maravilhosos 🥰🥰🥰 … uma verdadeira aula de história em forma poética … Parabéns maninho Adinaldo e amigo Edmur 👏🏽👏🏽👏🏽.
“Resplandecer” é mesmo poesia bela e poderosa, que toca fortemente a alma de quantos sintam pulsar em seu coração o humano e, a dor da tragedia da escravidão e do racismo, que ferem, cotidianamente, nossa consciência, nosso corpo social, como chibatadas, hoje, transformadas em ofensas, violência e assassinatos, já não sendo necessário preservar a vida do negro. “Resplandecer” revela a alma do poeta em plena sintonia com as causas do seu tempo, do seu povo, que faz suas, com expressão de extraordinária beleza. É grande o conforto conhecer essa linda poesia de um amigo querido, Adnaldo de Souza, brilhantemente comentada por outro querido amigo Edmur Alves.
Eu compartilhei este jornal com uma dúzia de amigos. Eles também se surpreenderam com a sua linguagem ágil, sua dinâmica nas temáticas de assuntos. Parabéns ao Editor.
O Jornal Vida Brasil Texas, agradece.
Não há nada mais devastador para a cidadania brasileira do que nossa herança escravagista. A poesia “Resplanceder”, do Adinaldo, capta essa chaga histórica de maneira magistral: ele ecoa tanto a indignação e a revolta contra a vilania quanto a esperança de libertação presentes em um Solano Trindade ou em uma Conceição Evaristo, entre outros tantos poetas negros brasileiros consagrados. Seus versos saem da alma de quem viveu e vive a discriminação e o racismo cotidiano em todas as suas formas, desde a dissimulação paternalista às manifestações escancaradas dos epígonos tupiniquins da Ku Klux Klan dos dias de hoje. E o comentário do Edmur Alves realça, com grande emoção, a dimensão do poema. Mais de 150 anos depois de Castro Alves ter escrito: “Senhor Deus dos desgraçados!/Dizei-me vós, Senhor Deus,/Se eu deliro… ou se é verdade/Tanto horror perante os céus?!…”, a poesia continua mais do que necessária.
Amigo Adinaldo, é muito bom saber que neste mundo tão agitado hoje em dia repleto de pessoas oportunistas levianas e fúteis, aparece você como uma joia rara, que quase nunca é encontrada.
Você é um ser humano grandioso, cheio de potencialidades e repleto de amor para dar ao próximo. Você se parece com os grandes sábios da humanidade, pois tem paciência com todos e sempre acredita que o bem pode se tornar real. Parabéns pela matéria!!!!!!!!
Poderosa poesia absolutamente providencial e tristemente atual. E o comentário complementa de maneira brilhante esse respiro de lucidez nesse mar de preconceito e obscurantismo que vivemos.
Linda poesia e enriquecedores comentários! Descrição de fatos históricos que explicam de forma poética e descritiva o racismo estrutural da sociedade brasileira. O cruel, devastador e “velado” racismo brasileiro.
Entre os comentário, os versos e as imagens foram diversas lidas e relidas até chegar a esse comentário.
Alguém já disse que os diversos leitores de um mesmo livro o leem diferente, essa uma das magias da literatura.
Já debatemos diversas vezes, divergimos em alguns pontos, mas na essência concordamos.
Nossos ascendentes foram os únicos a virem pra essas terras contra vontade, os demais ou eram originais ou vieram fugindo de algo ou em busca de algo. Nossos ascendentes não foram imigrantes, foram escravizados.
Logo no primeiro verso, síntese brilhante da profunda dor expiada por nossos parentes cativos: “O que falar das alegrias nunca ocorridas no amanhecer …reprimidos, no anoitecer”
Devo resistir à tentação de comentar verso a verso.
Chegamos aos dias atuais percebendo que o flagelo continuou, continua e continuará, porém, como otimista que sou, vejo o “copo meio cheio”, no que tange ao preconceito e a consequente discriminação.
Cumpre lembrar que ninguém nasce preconceituoso, mas absorve e estigmatiza. Por isso acredito que com vistas no passado, no presente podemos escrever um futuro diferente, e aposto no esclarecimento da ignorância que é o preconceito.
Sem me estender mais, sito o exemplo do que ocorreu esse ano nos enredos das Escolas de Samba RJ/SP, uma maioria de não negros como carnavalescos e dirigentes falaram de nossa, religião, nossos costumes, personagens, enfim no mínimo chamaram atenção para nossas questões, sei que alguns entendem isso como apropriação…, mas o assunto aqui é a poesia do Adinaldo, o exemplo serviu apenas com gancho pra dizer que tantos quantos leiam esses versos apreenderão algo que por certo contribuirá favoravelmente com nossas causas. Perdão por me estender tanto, estamos a espera de mais.
Caro Adinaldo! Resplandecer é singular. É igualmente uma poesia bela e poderosa, pois está carregada de HISTÓRIA. Não sei se teremos ou se já temos a nossa Rosa Parks. Todavia já temos um poeta que nos faz sentir na sua poesia o vigor de nossa ancestralidade em cada verso. Temos o poeta Adinaldo José de Souza!
Parabéns ao autor e também ao Editor do Jornal Vida Brasil Texas por nos brindar com esta poesia.
Fraterno abraço
Osmar
O Jornal Vida Brasil Texas , agradece.
Poeta Adinaldo Souza e Edmur Alves, quando riqueza nos detalhes e nos caminhos por onde vocês nos conduziram. Só posso agradecer por privilégio de entender parte da história do negro brasileiro através de tão lindos versos.
Não sei se rio pela forma elegante com que foi descrita a realidade ou se choro com a forma execrável como foi e é tratado o negro brasileiro.
De toda sorte, mais uma vez muito obrigado por nos servir de farol na escuridão.
“Tantos são os negros e no entanto nada são para a mudança dos fatos
Continuam sem direitos, tampouco respeito, quiçá afagos”
Dr. Estevão Silva
Li e refleti sobre tua poesia “Resplandecer”, muito bem comentada com sensibilidade e maestria.
A condução e analise de cada verso põe em evidência um conjunto de emoções, conhecimentos e significados profundos que conectam o passado e o presente de uma história de exploração, discriminação e usurpação de um direito primordial: a liberdade.
A luta e a resistência do negro no Brasil é um tema de pleno domínio pelo autor dos versos. A sua ancestralidade e sua experiência de vida reforçam a sua determinação de romper as barreiras do racismo perpétuo e da acomodação da sociedade brasileira representada pelo estado, igreja e por seus cidadãos negros, brancos e miscigenados.
Na minha reflexão percebi que sua postura nobre e sincera, manifestada por palavras e versos expressivos, pode representar um porto seguro diante de um oceano de desinformação. Um alerta sobre as sutilezas e artifícios empregados na manipulação da educação, da cultura e dos meios de comunicação. Ações que por vezes são impostas por segmentos conservadores para restringir os avanços conquistados na defesa de direitos, constituídos por lei, ao custo de muitas vidas: liberdade, igualdade e respeito para todos.
Meu sincero respeito a Rosa Parks, Marielle Franco, aos Movimentos Negros no mundo e a todas as vozes e versos de conscientização que não podem calar. Parabéns Adinaldo Souza e Edmur Alves, até breve!