Fonte – Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre
Por Ariel Seleme
Da janela do avião via o vermelho brilhando na ponta da asa. Pequenos aglomerados de luz, abaixo, indicavam existência de vilas ou lugarejos em ilhotas do caribe. Aos poucos o sol nascia no horizonte. Dia aqui, noite no Vietnã.
Férias. Finalmente, férias. Pensava em BH; na cachaça mineira do Mercado Central; no frango ao molho pardo do Maria das Tranças e caminhadas nas alamedas verdejantes do Parque Municipal. Subir Bahia e descer Floresta, dizia o poeta. Tomei uns copos de vinho e dormi cantarolando: como pode um peixe vivo viver fora d’água fria….
Fonte foto – Alma Estrada
– Acorda amor. Acorda. Já estamos chegando e eles estão servindo o lanche. Renata me cutucava com uma mão e com a outra segurava a última edição do jornal O Estado de Minas
– Uhmm, ããhh, já tá chegando? Meu Deus, dormi demais.
– Eu vi. Você até roncou.
– Que horas são?
– Quase cinco da tarde. Veja amor, aqui no jornal. Esse cara formou com você na economia da PUC. Peguei o jornal.
– Clarivaldo Guerra? Não. Não formou comigo. Era da turma de 92.
– Hoje ele é chamado de Mandeta e comanda o tráfico de drogas em BH.
– O Clarivaldo virou Mandeta?
– Você o conhecia?
– Só de vista e algumas palavras. Chefe do tráfico de drogas? Nossa, quem diria.
– Diz aqui, também, que ele está muito doente.
Chegamos. O pouso foi profissional, como uma pluma tocando gentilmente o solo. Escurecia. Quando saímos do avião passou por nós três policiais conduzindo um indivíduo algemado.
Foto – Wikipédia, a enciclopédia livre
– Meu nome é Gastão Orleans. Vocês prenderam a pessoa errada. Exijo um advogado.
– Cala boca, cachorro. Disse um dos policiais.
– Você viu amor, o guarda chamou o rapaz de cachorro. É abuso de autoridade.
– Deixa isso pra lá. Estamos de férias até de abuso de autoridade.
Pegamos as quatro malas da esteira giratória e com mais duas malas de mão, bolsas e mochilas, seguíamos para a saída do aeroporto, quando alguém gritou: – Pega ladrão. Ladrão. Pega ladrão. Olhei para trás e vi um cara gordinho, baixinho e de bigodinho estilo Cantinflas, vindo na minha direção.
– Você mesmo seu ladrãozinho, devolve minha mala.
– Eu? Sua mala?
– Você mesmo seu ladrão de mala. Polícia. Cadê a polícia para prender esse ladrão de mala?
– Desculpa, sua mala?
– Sim, minha mala. Essa aqui é minha mala.
– É mesmo amor. Essa mala aqui não é nossa. Desculpa moço. Pegamos a mala errada.
– Errada nada. Vocês sabiam que eu tenho coisas de valor nessa mala. É roubo. Já me aconteceu isso antes. Cadê a polícia? Logo chegou um guarda. E as férias estavam recém começando.
– O que está acontecendo aqui? Renata chegou trazendo a nossa mala que estava na esteira, e falou:
– Foi tudo um engano, seu guarda. Pegamos a mala desse moço por descuido. Ela é muito parecida com a nossa que é esta.
– Engano nada, esse casalzinho pilantra estava roubando minha mala.
– Pilantra é sua avó seu palhaço. Parti pra cima.
– Calma aí vocês, ou levo os dois em cana.
– Qual é a ocorrência, Cabo? O cabo em continência respondeu.
– Coronel, este senhor aqui acusa o casal de tentar roubar a mala dele.
– Foi um engano Coronel, pegamos a mala do moço que é muito parecida com a nossa.
falou Renata.
– Ariel, é você?
– Praxedes? Quanto tempo meu amigo. O Coronel virou para o gordinho.
– Você pegue sua mala e suma daqui. Conheço o Ariel ele não ia roubar mala de ninguém.
Vai andando. O Cantinflas saiu resmungando.
– Quanto tempo, meu amigo. Nem sabia que você estava na polícia militar. Coronel Praxedes! Parabéns.
– Depois que sai da faculdade perdi o contato com a turma. Como não tenho Facebook e essas coisas, não sei da vida de ninguém. E você, está indo para aonde?
– Pro centro. Rua Goiás.
– Tome aqui meu cartão, Ariel. Me liga e marcamos um chope.
– Atenção cabo. Arranje uma viatura e leve esses dois para o centro, e é pra já!
– Sim, Coronel Praxedes.
– O que é isso Praxedes, não precisa. Por favor, nós vamos de taxi. Não quero incomodar.
– Sem discussão. É ordem do coronel. Só estou devolvendo favor.
– Devolvendo favor?
– Você não lembra? Se não fosse por você eu estava na faculdade de economia até hoje.
Fonte – Wikipédia, a enciclopédia livre.
Aquela prova de matemática que você me deu cola, lembra?
– O que é isso Praxedes? Faz tanto tempo. Você não me deve nada.
– Estou aqui numa operação para levar preso um bandidão que chegou de São Paulo. Como estou com viaturas demais, algumas vão voltar vazias. Não é incomodo. Cabo, leve os dois até o centro, agora. Tenho que ir Ariel, me liga para aquele chope. E seu nome madame?
– Renata, coronel.
– Linda esposa, Ariel.
– Obrigado, coronel.
– Agora você leve os dois, cabo.
Praxedes saiu apreçado para um lado e nós, com muitas malas, seguimos para o outro, até a viatura que estava logo no lado de fora. Como carro de polícia não tem porta mala, começamos a colocar as malas no banco de trás. Quando já estava tudo encaixado percebemos que só sobrava um lugar na frente.
– Nós vamos juntos aqui na frente, amor.
– Não senhora, não dá. É contra a lei. Eu posso colocar um de vocês no camburão atrás, onde vão os presos. Ou movemos as malas de novo.
– Não precisa mexer nas malas, deu trabalho demais para encaixar todas. Eu vou atrás, no camburão, são menos de 30 minutos até o centro.
– Deixa que eu vou atrás, amor.
– Claro que não. Você vai na frente.
– Certeza, senhor?
– Claro, cabo. Só toca devagar. Combinado?
https://jornaldocarro.estadao.com.br/fanaticos/nostalgico-veraneio-76-ainda-mete-medo/
Entrei e a porta foi fechada.
– Vou trancar o cadeado, porque é mais seguro.
– Tudo bem, cabo. Saímos. Essas férias não estão começando bem. – Pensei.
– Tudo bem aí, amor?
– Tudo. Tem como ligar o ar condicionado aqui atrás? O cabo riu.
– Infelizmente não, senhor. Aí é lugar de bandido.
– Calma, amor. Já estamos chegando. Mais uns 20 minutos, no máximo. Logo forte cheiro de queimado começou a circular pelo camburão.
– O que está acontecendo, cabo?
– A viatura está superaquecendo, senhor. Vou ter que parar e averiguar. Percebi que descemos uma ladeira e a viatura parou. Começou a chover.
– A viatura não tem condições de seguir. Eu vou tirar o senhor daí. Senti que o cabo forçava o cadeado e nada de abrir.
– Não estou conseguindo abrir, senhor. O cadeado está emperrado.
– Calma, amor. Eu vou até ali na frente, numa loja de ferragem, talvez alguém consiga vir aqui e abrir o cadeado.
– Cuidado senhora. Esta região é muito perigosa. Pela fresta do camburão vi Renata correndo na chuva. Poucos segundos depois vi o cabo correndo em outra direção e escutei sons de tiros. Gritos e mais tiros. Rajadas de metralhadora. Congelei. Quando os tiros cessaram, escutei paços.
Fonte – Desciclopédia a enciclopédia livre – https://desnoticias.org/wiki/P%C3%A1gina_principal
– Alfredão, tem alguém preso no camburão. Mais paços. Olhei pela fresta, eram 7 homens armados de metralhadora.
– Espera aí parceiro, que nós já vamos te tirar daí. Cafunga, abra aqui pra nós. Da fresta vi o rapaz tirar fino arame do bolso e em segundos o cadeado estava aberto. Aplausos e assovios.
– Esse é o Cafunga, com ele não tem cadeado fechado. Abriram o camburão e o Alfredão me ajudou a sair.
– Por que será que prenderam esse almofadinha? Perguntou um dos bandidos.
– Por que te prenderam, parceiro? Perguntou Alfredão. Congelado de medo a única coisa que saiu da minha boca foi:
– Eu sou amigo do Mandeta. Alfredão olho firme pra mim, pegou o celular e ligou:
– Escute. Fale urgente com o chefe que encontramos o cara. Vamos subir com ele agora.
– Venha parceiro, o chefe está te esperando. Leva ele com você na moto, Cafunga. Montei na moto sem sentir minhas pernas. Cafunga voava baixo pelas ladeiras do morro. Escutei mais rajadas de metralhadora. Cafunga virou para atrás e me disse:
– Esses tiros são para comemorar a sua chegada.
– O que?????
Paramos numa quadra de esporte e dali seguimos caminhando por becos até um grande galpão. Lá uns 20 bandidos armados me esperavam. Quando entrei foi euforia total.
– Benvindo parceiro. Falavam todos.
– Venha comigo, que o chefe está te esperando. Segui Alfredão por longo corredor, como o condenado que caminha para a forca. Sentia que aqueles eram os últimos minutos da minha vida. E eu que só queria umas férias tranquilas em BH.
Fonte foto foto – Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
– O chefe está muito doente. Não escuta e não enxerga direito, por isso ele gosta de ficar no escuro. Entrei numa sala escura que no fundo, embaixo de fraca lâmpada, havia alguém sentado em larga poltrona.
– Entre e venha até aqui. Que bom que você chegou. Venha mais perto. Quero ver pela primeira vez este rosto que tanto nos ajudou no tráfico de droga em São Paulo. Venha para perto da luz. Fui seguindo lentamente, como que dizendo adeus ao mundo. Me aproximei. Mandeta me olhou atentamente.
– Então é você o nosso grande amigo, Cachorro Louco?
– Sim, sou eu Mandeta.
– Se aproxime mais. Deixe-me te ver melhor. Mandeta continuava me olhando atentamente.
– E a Dorinha, que tristeza. Fiquei sabendo. Morreu do que?
– Morte natural.
– Morte natural? Me falaram que foi atropelamento.
– É, foi sim. (comecei a tremer) Foi um atropelamento natural. Dessas coisas que acontecem todos os dias em São Paulo.
– Ah, entendi. Se aproxime mais. Seu rosto e sua voz me parecem familiar. Espere aí.
Espere aí. Eu te conheço. Você é o Ariel da economia da PUC! Pronto. Estou morto. Agora é agarrar com Deus e falar a verdade.
– Então é você, Ariel? É você o nosso grande amigo de São Paulo. Você é o Cachorro Louco?
– Sim. Sim. Sim, sou eu Mandeta. Mantive minha identidade em segredo por questão de segurança.
– É claro, entendo. Mas que mundo pequeno. Meu amigo Cachorro Louco é o Ariel da economia.
Fonte foto – Acervo pessoal de Ariel Seleme
– Alfredão, chegue aqui. O Cachorro Louco é um amigo dos tempos de faculdade. Fiquei sabendo agora. O Alfredão é da PUC, também. Fez direito. Primeiro lugar no exame da OAB.
– Primeiro lugar. Parabéns, Alfredão. (Suava frio e as mãos tremiam. No escuro, ninguém percebia).
– E o Cafunga fez engenharia mecânica na Federal.
– Engenharia mecânica, legal. Não é à toa que ele foi rápido abrindo o cadeado.
– E você, lembra do Praxedes?
– Praxedes? Praxedes?
– Aquele palhaço que você passava cola nas provas, e toda a faculdade sabia.
– Ah, o Praxedes. Lembro sim. Faz anos que não vejo.
– Agora é Coronel da polícia.
Foi ele que mandou te prender em São Paulo. Esse canalha é nosso inimigo mortal.
– Nunca gostei desse Praxedes. Sempre foi um canalha. E agora então, Coronel da Polícia. Canalha! Mandeta ficou nervoso e começou a tossir fortemente. Tosse rouca e profunda.
Alfredão vendo que o Mandeta passava mal, acendeu a luz da sala. Na claridade vi o Clarivaldo Guerra (vulgo Mandeta) macérrimo e branco como a lua. Desmaiou.
– Chamem o médico, o chefe está passando mal.
Em poucos minutos Mandeta foi socorrido. Consciente novamente deu ordem ao Alfredão.
Fonte foto – Acervo pessoal de Ariel Seleme
– Avise a bandidagem que o Cachorro Louco é o segundo no comando. Na minha ausência, quem manda aqui é ele.
– Aviso já, chefe.
– Eu, Mandeta? Eu?
– Estou muito doente e preciso de você para me ajudar no comando.
– Mas Mandeta, eu preciso, pelo menos, ir até o centro buscar algumas roupas.
Eu volto amanhã cedinho para te ajudar no comando. Amanhã cedinho eu estou aqui, juro.
– Não tem como sair agora. O morro está cercado. Aquele canalha do Praxedes mandou cercar o morro e estão falando que a polícia vai subir. Se subirem, descem todos no caixão. Vai morrer muita gente, e eu já mandei avisar. Esses otários, vez por outra, cercam o morro, mas não têm coragem de subir. De madruga vai estar mais tranquilo e você sai.
Agora eu vou descansar. Vá fazer a ronda com o Alfredão para ele te explicar a nossa operação toda. Alfredão me esperava no galpão. Quando me viu foi logo passando uma metralhadora novinha.
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– Prefiro não usar, Alfredão.
– Não tem como ficar sem arma. Se você andar por aí desarmado a bandidagem não vai te respeitar. Não sei com é lá em São Paulo, mas aqui é assim. Pendurei a metralhadora no ombro e sai na ronda com Alfredão. Caminhando pensava na vida. Pensava nas minhas férias. Pensava que tudo iria acabar mal. Morto ou preso.
Que férias meu Deus. Olhei no relógio, 9:30. De madrugada saio daqui e amanhã mesmo volto para Honduras. Vou ficar longe de BH por um bom tempo. Me ajuda nessa meu Deus.
– Pensava. No meio da ronda alguém soltou um foguete que ecoou no morro. O celular do Alfredão tocou. Ele atendeu e começou a lacrimejar.
– O que foi, Alfredão?
– Mandeta morreu. Você é o nosso chefe agora.
– Eu?? O que?? Mandeta morreu e eu sou o chefe da quadrilha??? Não, não, nãooooo. Eu não acredito. Nããããõoo pode ser.
Fiquei tonto para desmaiar e Alfredão me segurou.
– Calma Cachorro Louco, calma. Eu, também, gostava muito dele, mas agora é hora de manter a calma. No galpão, toda a bandidagem se reuniu ao redor do cadáver do Mandeta. Mais de 100 homens fortemente armados. Uns carregavam até bazuca.
Alfredão pediu silêncio.
– Atenção bandidagem. Mandeta, nosso amado chefe morreu. A ordem dele foi clara e direta. Nosso novo chefe agora é o Cachorro Louco. Quem está com chefe Cachorro Louco até a morte levante sua arma.
Um mar de metralhadoras, revólveres e bazucas cobriu a cabeça da bandidagem.
– E viva o Cachorro Louco! – Gritou Alfredão.
– Viva! Viva! Viva! A bandidagem gritava viva ao mesmo tempo que subia e descia com as armas.
Quase desmaiei novamente e Alfredão me segurou.
– Muito emoção, não é chefe?
– É, Alfredão. Muita emoçãoooo.
– Senta Cachorro Louco, que é melhor. Você quer um copo de água com açúcar?
– Uma água com açúcar vai bem. Eu só queria umas férias tranquilas. Era só isso que eu queria.
– O que foi, chefe?
– Nada não, Alfredão. Avise a bandidagem para todo mundo voltar para os seus lugares. A polícia está ameaçando subir o morro e não podemos nos descuidar. E outra coisa Alfredão, de madrugada vou ter que sair do morro. Na minha ausência você fica no comando.
– Positivo, chefe.
Agora é esperar a madrugada e vazar. Daqui vou direto para o aeroporto. Falo com a Renata me encontrar lá e pegamos o primeiro avião para qualquer lugar. – Pensava.
ENQUANTO ISSO, NO QUARTEL DA POLÍCIA MILITAR.
– Entre, Capitão Gerôncio.
– Coronel Praxedes, com licença.
– O que foi?
– Coronel, a inteligência da Polícia Militar informa que o chefe da bandidagem, o Clarivaldo Guerra, vulgo Mandeta, morreu há poucos minutos. O Cachorro Louco é o novo chefe e já assumiu o comando.
Fonte – Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
– Como Cachorro Louco assumiu o comando, se ele está preso aqui no quartel?
– Pois é Coronel, esse que está preso aqui não é o Cachorro Louco. O verdadeiro Cachorro
Louco acaba de assumir o comando da bandidagem.
– E quem é esse palhaço, que a polícia de São Paulo nos mandou?
– Aparentemente se chama Gastão Orleans, e diz que foi preso por engano.
– E parece que foi mesmo. Manda soltar esse palhaço e enfia no primeiro ônibus pra São Paulo.
– Sim, Coronel. Positivo e operante.
– Aguarde capitão. Estou esperando um telefonema do governador e o assunto diz respeito ao seu comando. Em menos de um minuto Praxedes estava com o governador ao telefone.
– Sim, governador. Entendido. Vou mobilizar as tropas. Hoje mesmo subimos o morro com força total. Vou colocar mil homens na operação. Sim, governador, convoco a imprensa também. Entendido. Agora mesmo.
Praxedes desligou o telefone e colocou a mão na cabeça.
– O que foi Coronel?
– O governador mandou invadir o morro agora.
– Agora, à noite.
– Sim, capitão. Agora, já. Antes do sol nascer ele quer o morro todo ocupado. Parece que vai sair pesquisa de opinião amanhã, e a popularidade está lá no chão. Ele quer a invasão do morro como manchete de jornal e não a pesquisa de opinião.
– Mas coronel, subir o morro à noite é uma loucura. Vai morrer muita gente.
– Eu sei, capitão, mas ordem é ordem. Prepare as tropas. Antes da meia noite vamos invadir.
DE VOLTA AO MORRO.
– Cachorro Louco, é urgente, venha aqui.
– O que houve, Alfredão?
– É o Cafunga que quer falar. Fala Cafunga.
– Está chegando muita polícia lá embaixo. Já tem mais de 500 soldados nas entradas do morro e estão chegando mais e mais. Os solados estão falando que antes da meia noite eles vão invadir e é para todo mundo ficar dentro de casa.
Cafunga ainda falava, quando um tiroteio começou.
– O que é isso, Alfredão?
– É o pessoal da sentinela 4 atirando na polícia.
– Manda parar, agora. Ninguém atira sem minha ordem. Manda parar.
– Sim, chefe. Pelo celular a ordem foi dada. Nem mais um tiro sem a autorização do Cachorro Louco.
Foto fonte – Wikipédia, a enciclopédia livre – Favela em Belo Horizonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Minas_Gerais#/media/File:Favelas_%C3%A0s_margens_da_Av._Presidente_Ant%C3%B4nio_Carlos,_Belo_Horizonte_MG.jpg
– E agora, chefe, o que fazemos?
– Agora é aguardar. Deixe-me pensar. Alfredão, me responda uma coisa. Até que ponto a bandidagem vai me obedecer?
– Nós vamos te obedecer até a morte. Morre todo mundo aqui, mas ninguém te abandona. O que você falar é lei.
– Qual é a melhor forma de falar agora com todo a comunidade do morro?
– Nessas horas que tem tiroteio e ameaça de invasão, o pessoal aqui todo fica ligado na Rádio Atalaia. A rádio manda um carro, pra entrada do morro, e eles fazem cobertura ao vivo. Veja, é fácil, dá para escutar no celular.
– Liga pra rádio. Eu preciso falar com eles urgente.
Minutos depois.
– Chefe, eu estou com a repórter da rádio na linha, mas ela está achando que é piada.
– Me passe o telefone. Deixa eu falar com ela. Alô, quem fala?
– Aqui é a Claudirene, repórter da rádio Atalaia.
– Olá Claudirene, aqui é o Cachorro Louco, eu preciso dar uma declaração.
– Eu já falei com o tal do Alfredão que essa não é uma boa hora para passar trote na rádio. O morro vai ser invadido a qualquer momento e muita gente vai morrer. Amigo, não é hora de brincadeira.
– Claudirene, você está aí na entrada do morro, não está?
– Sim.
– Você sabe que ninguém atira sem minha ordem? Eu vou dar três tiros para cima e te provar que quem fala aqui é o Cachorro Louco. Alfredão atire três vezes, por favor. Os três tiros ecoaram pelo morro, que estava em total silêncio.
– Chefe, corre. É o Cachorro Louco na linha. É ele mesmo. Ele quer dar uma declaração.
– Senhor Cachorro Louco, aqui é a Beatriz, chefe de reportagem da rádio Atalaia. Vou colocar o senhor ao vivo na rádio, para a sua declaração. Conte comigo até três para entrarmos ao vivo. 1,2,3. Ao vivo a rádio Atalaia conversa agora com o senhor Cachorro Louco, novo chefe da quadrilha do Mandeta. Cachorro Louco, o que o senhor tem para dizer?
– Boa noite Beatriz, boa noite a todos os ouvintes da rádio Atalaia. Vivemos minutos muito difíceis e uma verdadeira guerra pode começar a qualquer momento. Vejam, a decisão de invadir o morro a essa hora é verdadeira loucura. Aqui em cima eu tenho 200 homens, muito bem armados, que estão dispostos a lutar até a morte, aí embaixo mais de mil soldados, e no meio temos 50 mil pessoas, que são os moradores dessa comunidade.
Fonte foto – Wikipédia, a enciclopédia livre – Morro do Carmo
– O que o senhor propõe, Cachorro Louco?
– Eu proponho um acordo. Paz. Entendimento. Quero falar com o Coronel Praxedes. Quero negociar (ao ouvir essas palavras o morro explodiu em aplausos e gritos de alegria).
Beatriz, só mais uma coisa. Tenho uma única exigência. Toda a conversa com o Coronel Praxedes tem que ser transmitida ao vivo pela rádio Atalaia. Tudo com muita transparência.
– Perfeito, Cachorro Louco. Tenho certeza que o Coronel Praxedes está nos ouvindo e em breve volto a fazer com contato com o senhor.
– Pode me chamar de você, Beatriz.
– Cachorro Louco, só mais uma pergunta: por que o crime?
– De que crime você está falando, Beatriz? De fraude em licitações públicas? De juiz morar em casa própria e receber auxílio aluguel? De parlamentar vender seu voto para legislar? Ou o crime de termos a maior taxa de juros do mundo?
– Estou falando do crime de tráfico de droga.
– Você sabia, Beatriz, que mais de 40% das pessoas que estão presas no Brasil, cometeram pequenos crimes não violentos? Pequenos furtos ou porte de pequenas quantidades de drogas. Sabe qual é a maior fabrica de bandido no Brasil? Eu te digo.
É o nosso sistema prisional. Prendem um garoto com pequena quantidade de droga. Ele que já não tinha emprego, depois de prezo não vai conseguir emprego nunca. Esse garoto, na prisão, vira soldado do grande crime organizado. Não tem outro caminho, ou entra pro crime organizado ou morre.
– E vira um soldado seu?
– Meu, como assim?
– Seu, como chefe da maior quadrilha de Minas Gerais.
– Eu mesmo, bem não. Digo, do Cachorro Louco sim. Bem Beatriz, pra resumir, o que nós queremos é um acordo. Não queremos a guerra e podemos até nos entregarmos para a polícia, mas eu quero negociar.
– Ok, Cachorro Louco. Assim que contatarmos o Coronel Praxedes eu volto a falar com você.
– Beatriz, só uma última pergunta. Por um acaso você é Beatriz Levinia, irmã da Olga Levinia, que fez psicologia na PUC?
– Sou eu sim, como você sabe?
– É que um amigo meu era muito amigo da sua irmã. E ela, está bem?
– Está muito bem sim, graças a Deus. Mas esse seu amigo que conhece minha irmã, como se chama?
– Não posso falar, se não coloco o rapaz em dificuldade. Você sabe, ser amigo do Cachorro Louco não é boa referência pra ninguém. Bem, Beatriz, aguardo um retorno seu.
– Até logo, Cachorro Louco.
– Bye.
Devolvi o celular pro Alfredão.
– Se entregar, Cachorro Louco? Você tem certeza?
– Escuta Alfredão. Se resistirmos, eles sobem o morro e matam todos nós. E vai morrer muita gente inocente, e muitos destes soldados que estão até com salários atrasados.
– Eu não posso morrer agora. Tenho uma filha recém-nascida.
– Pois é Alfredão. Ninguém precisa morrer, e ninguém vai morrer. Eu tenho um plano e todos vamos sair com vida dessa história. Agora é aguardar o Coronel Praxedes. Se eu conheço o Praxedes, ele vai topar. Que horas são?
– 11 e dez.
– Se até 11 e trinta o Praxedes não me ligar é sinal que eles vão subir de qualquer jeito.
– E daí?
– Daí, eu não sei o que pode acontecer.
11 e vinte e cinco toca o celular do Alfredão.
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
– É da rádio, Cachorro Louco.
– Alô, Beatriz.
– Alô, Cachorro Louco. Está aqui na rádio, para falar com você ao vivo, o Coronel Praxedes.
– Alô, Cachorro Louco, aqui é o Coronel Praxedes. A ordem do governador é invadir o morro de qualquer jeito. Eu, na qualidade de chefe da operação, resolvi te escutar.
– Esse é o grande Praxedes. Sempre teve um bom coração. Pensei.
– Escute, Coronel. Se suas tropas subirem o morro vai ser uma matança. Quantas vidas dos seus soldados você está disposto a sacrificar para cumprir a ordem do governador?
Aqui somos 200, e a minha turma vai lutar até morrer.
– O que você quer?
– Tempo. Nós vamos nos entregar, mas preciso de tempo para organizar tudo aqui em cima.
– Quanto tempo?
– Até as cinco da manhã. Ninguém sobe até as cinco da manhã.
– Me dê um tempo. Vou conversar aqui embaixo. Em breve te ligo novamente.
Passaram duas horas.
– Cachorro Louco! Chamou Cafunga assustado. As tropas do Praxedes estão se preparando para invadir. Chegaram mais soldado do batalhão de choque. O que a gente faz? Eles vão subir a qualquer momento.
– E agora, Cachorro Louco. É tudo ou nada. Vamos morrer lutando? – Perguntou Alfredão.
– Não, ninguém vai morrer hoje. Ninguém vai morrer hoje. Tem floricultura no morro?
– Tem. Da dona Margarida.
– Mande alguém até lá, compre todas as flores e diga para ela juntar pessoas e começar a distribuir na comunidade. Acorde o povo. Bata de porta em porta, distribua as flores e diga que é uma ordem minha.
– Não estou entendendo nada, mas ordem sua é para cumprir. Faça isso agora, Cafunga. – Disse Alfredão.
O celular chamou.
– É da radio, Cachorro Louco.
– Alô, Beatriz?
– Aqui é o Coronel Praxedes e não estamos ao vivo. Te ligo para dizer o seguinte, o governador ameaçou tirar o comando da operação das minhas mãos. A ordem dele é invadir o morro imediatamente. Ele quer usar essa operação para reverter a situação de desaprovação do governo. Ele pode me tirar da operação e até da polícia.
– Beatriz? Beatriz, você está aí?
– Estou aqui, Cachorro Louco.
– Beatriz, escute bem o que eu vou te falar, e essa vai ser a grande decisão da sua vida.
Você escutou o coronel. Essa invasão não é para combater ao tráfico de droga nem a criminalidade. A invasão que só tem um objetivo político, o de melhorar a imagem do governador, que está muito mal. Escute, você tem que me por ao vivo na rádio. Nós queremos nos entregar. Eu só preciso de mais tempo. Centenas de pessoas podem morrer.
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– Cachorro Louco, essa decisão não é difícil, e eu a tomei no primeiro dia da faculdade de jornalismo. Eu não obedeço nem governador, nem presidente. Meu chefe é o meu ouvinte e a informação imparcial. Meus ouvintes têm o direito de te escutar. Vou te colocar ao vivo em 10 segundos.
– Alfredão, eu vou falar ao vivo na rádio. A ordem é a seguinte. Reúna toda bandidagem na quadra de esportes em dez minutos. Quero todo mundo lá, esperando por mim.
– Cachorro Louco, você está ao vivo na rádio.
– Ouvintes, boa noite. Se você mora aqui, e está me ouvindo, acorde seu vizinho, acorde seus parentes, o que tenho para dizer é importante e pode salvar a vida de muita gente.
O coronel Praxedes, do comando da operação, informou à radio Atalaia que a ordem do governador é invadir o morro, sem escutar nossa proposta de rendição. Por que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo? Como, Vietnã, Brunei, Taiwan, Laos, países bem menores e alguns mais pobres que o Brasil, conseguem viver sem violência? O caminho para reduzir a criminalidade e a violência é exatamente o contrário do que está ocorrendo aqui e agora. A redução da violência não pode ter como objetivo único o resultado político para governadores e presidentes. Há regiões no Brasil que as pessoas têm mais medo da polícia do que do ladrão.
As milícias, no Rio de Janeiro, são um exemplo disso. A criminalidade no Brasil só vai diminuir quando todo o cidadão e cidadã participar ativamente nessa redução, e para isso acontecer tem que haver confiança. Confiança no governo, confiança na justiça e confiança na polícia. Por que a criminalidade é tão pequena no Vietnã? Lá, todo o cidadão é um policial, todo o cidadão zela pela segurança do outro, todo cidadão delata atividades suspeitas, todo o cidadão confia nas instituições. Isso faz de Hanói, cidade de 8 milhões de habitantes e capital do país, ter, em média, 3 homicídios por ano. Uma cidade do tamanho do Rio de Janeiro com apenas 3 homicídios por ano.
Fui falando na rádio e caminhando para a quadra de esportes.
Fonte foto – Hanói – Wikipédia, a enciclopédia livre.
– Não é com mais violência que vamos reduzir a violência. Não é com soluções simplistas, como armamento da população. A solução vem com inteligência policial, políticas públicas e, fundamentalmente, participação de todos. E é a participação de todos que eu vou precisar agora. Peço a todas as pessoas, do nosso bairro, que saiam as ruas. Levem panos brancos, roupas brancas e as flores que receberam. Saiam e ocupem as ruas, as praças, dizendo não a invasão. Saiam agora, saiam já. Só o amor constrói. Gentileza gera gentileza. Paz na terra. Vida plena. Vamos para as ruas.
Na quadra de esporte a bandidagem estava todo reunida.
– Escutem todos. Essa é minha última ordem. A quadrilha do Mandeta acabou. Deixem todas as armas aqui na quadra de esporte. Essa noite ninguém vai morrer. Deixem as armas aqui e desçam e se misturem as pessoas que estão nas ruas. Vivam a vida foram do crime. Vai ser difícil, a vida não está fácil lá embaixo, mas pior é matar e morrer todos os dias na criminalidade.
– E o dinheiro? O que fazemos com o dinheiro?
– Guardem com amigos ou parentes. Vocês vão precisar de advogados. Agora desçam. As ruas logo estavam repletas de pessoas com panos brancos e rosas nas mãos. Alfredão foi o último a descer.
– E você não vai, Cachorro Louco?
– Vá na frente. Daqui a pouco eu vou.
Passaram 30 minutos e comecei a descer. Fui no sentido contrário ao de todos. Passei por becos e ruelas, fiquei perdido. Dei voltas e finalmente avistei o que parecia ser uma avenida. Desci a paços rápidos. A luz da avenida aproximava-se e a ansiedade, o medo, e a angústia me encontravam. Comecei a correr. Começou a chover. Comecei a chorar. Acabou. Acabou. Gritava. Ao entrar na avenida escuto uma voz.
– Alto lá. Levante as mãos e caminhe em nossa direção. Era a polícia.
– Quem é você, e o que está fazendo aqui?
– Sou amigo do Coronel Praxedes e estou perdido. Veja, aqui está o cartão dele.
– Qual é seu nome?
– Ariel. Sou amigo dele da faculdade de economia da PUC.
No radio da polícia o coronel foi chamado.
– Ei você, venha até a viatura. O coronel quer falar com você.
– Ariel, rapaz, o que você está fazendo aí?
– Estou perdido, Praxedes. Saí daquele camburão que deu defeito e fiquei perdido. E a Renata, está bem?
– Sim, pedi para deixá-la na sua casa com as malas. Outra viatura foi te buscar em pouco tempo e você já tinha desaparecido. Deixe eu falar com o tenente.
– Sim, coronel. Para já.
Apontando para o lado o lado o tenente falou:
– Entre naquela viatura. Eles vão te levar em casa. O cerco acabou e não vai ter mais invasão.
No carro da polícia vi as luzes do dia quebrando a noite e BH acordando mais linda que nunca.
– Você ouviu o tal do Cachorro Louco falando na radio Atalaia? Me perguntou o soldado que dirigia.
– Não.
– Rapaz, o cara falou bem demais. Já deve estar no youtube. Nunca vi bandido tão inteligente.
– Obrigado.
– Como?
– Obrigado pela dica. Vou escutar.
No apartamento da Rua Goiás toquei a campainha e nada. Depois de muito tocar finalmente Renata abriu a porta.
– Você me acordou, amor.
– Te acordei porque dormindo você não ia conseguir abrir a porta.
– Você demorou. Fiquei preocupada. O coronel mandou uma outra viatura nos buscar, quando chegamos no camburão você não estava lá. Como conseguiu sair?
– Passou um rapaz e abriu facilmente com arame. Sai e me perdi.
– Você deveria ter esperado perto do camburão.
– Eu sei, foi erro meu. E as malas?
– Tudo aqui. Não está faltando nada. Aproveita que você acabou de chegar e vai na padaria comprar leite, pão, café e manteiga.
– Ok.
Na esquina da padaria a banca de revista começava a abrir. Na capa da edição extra do Estado de Minas a foto do Praxedes e a manchete:
Fonte – Wikipédia, a enciclopédia livre – Banca de jornal e revistas na Praça da Savassi em Belo Horizonte
Ocupação pacífica. Policiais são recebidos com flores. Cachorro Louco está desaparecido.
Tem dias que viver vale apena. – Pensei.
Por Ariel Seleme
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